terça-feira, 23 de julho de 2013

A ADOÇÃO COMPARADA: Como ela funciona aqui e lá fora



 Como não poderia deixar de ser, não existe fenômeno social isolado, e o instituto da adoção não foge à regra. Com base nisso é impossível fechar os olhos para os estreitos laços que as instituições garantistas de direitos infanto-juvenis traçam com os mais variados fenômenos de nossa cultura e sociedade, e no que pecam.
 É neste sentido que devemos nos amparar nas regras do ser e do dever ser do sistema de adoção, especialmente como reflexo da sociedade, e não mais pertinente poderia ser tal análise senão levando em conta outra ex-colônia europeia que se desvencilhou da metrópole para andar sobre suas próprias pernas, os Estados Unidos, nação originalmente tão parecida com a nossa, para ver como lá funcionam os processos adotivos e o que eventualmente fazemos de tão errado para ter este sistema extremamente deficitário por aqui.
 Não entraremos em uma análise de direito comparado, pois os sistemas de common law e civil law são praticamente inconciliáveis em termos de garantias, além de o fato da federação estadunidense permitir autonomia infinitamente maior ao legislativo de seus estados do que aqui temos, razão pela qual teríamos de abrir vistas à lei de mais ou menos 50 estados americanos para fazer jus a completude da análise, coisa descabida no momento.
 Assim, nos resta traçar uma análise mais objetiva sobre um questionamento bem simples: o resultado, sem se prolongar muito.
 Abaixo, as elucidações do historiador Jacob Silverman acerca do sistema de adoção dos Estados Unidos, devidamente comentadas.

 Nos Estados Unidos, as adoções são realizadas, na maioria dos casos, através de agências específicas para esta finalidade, sendo que em alguns estados o intermédio de uma agência é requerido por lei.
  Após escolhida a agência de adoção, a família que se propõe a adotar recebe várias vistorias por parte de assistente social, própria da agência, que realiza o “estudo do lar”,  processo no qual se avalia a capacidade do casal em prover as necessidades da eventual criança, bem como auxilia com a instrução dos mesmos acerca do processo adotivo e prospecta a situação de melhor viabilidade entre adotante e adotado.
 Tal estudo geralmente leva de três a seis meses, podendo ser tal prazo ainda mais diminuto a depender da agilidade e interesse dos pais no preenchimento das etapas do processo, o que significa providenciar documentos de praxe e agendar de forma antecipada as diligências médicas. As entrevistas realizadas são minuciosas, feitas  com os candidatos de forma concomitante e de forma separada, sendo que a existência de outros filhos dentro do seio familiar também gera a necessidade de submissão destes ao processo de entrevistas.
O exame das condições do local de habitação dos candidatos também se dá de forma pormenorizada, sendo que o assistente verifica todas as localidades de convívio da criança, o local onde esta brincará, dormirá e terá suas refeições. A inspeção passa inclusive pelo crivo de bombeiros e médicos (dependendo do estado), sendo que os próprios candidatos podem ser submetidos a exames físicos para atestar sua capacidade de comportar uma criança em seu lar. Também são realizados testes de aptidão psicológica, com profissional habilitado, que levará em conta a situação e histórico do adotante.

 Em uma análise superficial, até o momento o processo todo é muito parecido com o praticado no Brasil, com o estudo básico das condições de inserção da criança na família que pretende acolhê-la. Contudo, vemos diferenças gritantes em dois pontos: na profundidade da análise feita pelos profissionais, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos, e no lapso temporal dedicado aos estudos. 
 Não somente no sentido da eficiência das mesmas ferramentas, a possibilidade de contratação de agência de adoção privada, que conta com seus próprios profissionais habilitados, devidamente remunerados pelo adotante, dilui sobremaneira o ônus e o custo ao Estado pela realização de todas as diligências de estudo e desembaraço. Beneficia-se a criança, o adotante, o Estado e ainda se cria nicho de mercado altamente especializado e de relevante papel social para as agências. Não existe dinheiro ou recurso perdido aqui. 
 Assim, nos são dados dois tapas na cara com esta metodologia: o primeiro deles diz respeito ao conceito errôneo de que a adoção deva ser demorada em razão da adaptabilidade limitada e lenta entre criança e família, coisa que pode ser superada de forma célere desde que assistida de forma competente. O segundo é em função do erro em entender burocracia e segurança como situações sinônimas, quando o desenrolar, em que pese a quantidade maior de etapas, é célere nos EUA, mesmo que o processo todo seja bem mais complicado do que aqui. 
 Silverman traz estatísticas assombrosas acerca da eficiência deste processo:

Aproximadamente 120.000 adoções são realizadas nos EUA todos os anos. As adoções de crianças abrigadas atingiram o número de 51.000, em 2002.

 São 120.000 adoções/ano em um país com menos do que o dobro de nossa população e diversidade étnica tão acentuada quanto. Não somente isso impressiona, como o fato de número próximo a 50% destas adoções ser proveniente de “foster homes”, ou abrigos para crianças que já possuem alguma idade e não mais são tidos como “infants”, o que aqui se traduziria como recém-nascidos.
 No Brasil ainda convivemos com a política propagandista de que muitos dos casos de adoção são indeferidos pois os candidatos a adotante são seletivos demais, ideia enganosa e amplamente rebatida por diversos estudos publicados no próprio MONACI. Se aqui a seletividade é tamanha como dizem, imagine como seria nos EUA, país com traços discriminatórios muito mais ressaltados do que em nossa nação. No entanto, a realidade estatística é outra.
 O historiador arremata com uma explicação da história do sistema nos Estados Unidos:

Muitos orfanatos foram criados nos EUA durante os séculos 18 e 19, porém, ao longo do tempo, questionamentos acerca da qualidade das condições de vivência e políticas discriminatórias surgiram, em especial durante a época dos movimentos pelos direitos civis. Orfanatos ficaram associados a uma imagem de maus cuidados, com ausência de qualquer forma adequada de auxílio físico ou psicológico às crianças.
 Logo em seguida à Segunda Guerra Mundial, orfanatos caíram em franca decadência nos Estados Unidos. A título de exemplo, na Chicago dos anos 70, estes já não existiam mais.
 A nível nacional o país substituiu o antigo modelo de orfanatos por RTCs (centros de tratamento residencial, na sigla anglófona). A diferença com relação ao antigo modelo é que agora a instituição mais se assimila a um centro de tratamento psicológico e a uma escola do que aos antigos depósitos de crianças, como haviam se tornado – e de certo modo sempre foram – os orfanatos em si.

  Note-se aqui importante diferencial com relação às práticas brasileiras. Nos Estados Unidos a definição de orfanato é completamente distinta da que temos aqui. Um abrigo à moda brasileira seria conhecido como orfanato por lá, e por diversos motivos. A recreação que aqui se dá às crianças, o acompanhamento psicológico e a educação são infinitamente negligenciados, tanto por falta de interesse e de repasse de verbas pelo poder público quanto pela própria falta de preparo e de estrutura das instituições.
 Considerando que a Segunda Guerra Mundial findou em 1945, o retrógrado sistema que aqui adotamos para prática de abrigo de crianças órfãs ou afastadas de suas famílias biológicas, entrou em franco declínio há quase 70 anos, já estando definitivamente sepultada há mais outros bons 40 anos no mundo mais civilizado. No frigir dos ovos, estamos defasados em quase meio século.
 Uma informação ainda mais dolorosa ao mote que vemos repetido à exaustão, de que seria o Brasil o país do futuro: o término da Segunda Grande Guerra foi marco histórico  não somente no campo da geopolítica, com a Alemanha devolvendo as migalhas da Alsácia-Lorena aos franceses, mas representou muito mais do que isso para os próprios Estados Unidos. Foi época de reviravolta cultural, do levante da população por uma civilização mais igualitária e com amplo enfoque nos direitos civis e nas reformas da educação; foi o ponta-pé que faltava para o crescimento dos EUA como nação evoluída e hegemônica que é hoje. Foi neste ponto que os EUA deixaram de ser uma nação agrícola e inocente para se tornar país de liderança global. Jamais poderiam ter feito isso sem pensar nas gerações futuras, na mais basilar das garantias que é a afirmação de mínimas condições de crescimento e desenvolvimento aos novos americanos, e nessa seara entraram as crianças órfãs, desamparadas, que agora, em pleno manifesto pelos direitos civis, não mais poderiam quedar em negligência.
 No nosso protótipo de nação do futuro, regra tão básica ainda não passa de um sonho.

O QUE APRENDER COM ISSO?

 Primeiro de tudo, que processo adotivo é prioridade, e não suplemento, como entendem certas entidades do judiciário ao alegar que “as crianças abrigadas estão bem onde estão”. Medida contrária ao princípio do ECA da proteção integral e prioritária da criança\jovem, discriminatória e negligente. Enquanto figuras geniais como Martin Luther King morreram lutando pelo fim destas discriminações irracionais e antiprogressistas, no Brasil tais práticas são avalizadas e institucionalizadas pelo judiciário ainda hoje.
 O segundo ponto, é que o cuidado e as diligências despendidas ao sistema adotivo não deveriam ser de competência unicamente estatal, pelo que poderia muito bem todo o processo ser aberto à iniciativa privada, servindo a figura do Estado como instituição de homologação de todo o processo.
 Se é medo a desculpa pelo arredio comportamento do Estado ante a proposta de se colocar a gerência de direitos fundamentais e da personalidade nas mãos de particulares, de que modo tal receio se justifica ante a própria e evidente incapacidade do Estado de garantir tais direitos? Além do mais, sempre será do Estado o dever de fiscalizar e credenciar as instituições, coisa que quiçá desempenhe com maior competência do que a costumeira, pois fiscalizar gera tributo e tributo gera a riqueza estatal – o que possui posição de maior destaque na hierarquia de prioridades de nosso Estado, muito antes do interesse das crianças.
 Por fim, fica claro que a adoção é apenas um dos elementos pelos quais uma nação demonstra a que veio, sendo sua gerência a própria previdência estatal no futuro. Abandonar uma geração de crianças que apenas precisam de um lar e de uma família para se tornar escolados e produtivos cidadãos é a mais evidente e inequívoca forma de burrice, de inaptidão, de renúncia à condição de bípede. Um país que não vê em suas crianças o futuro não verá futuro em lugar algum.

MONACI
(colaboradores)

*Jacob Silverman é formado em história pela Universidade de Emory, Atlanta, onde ainda atua se dedicando a produção de artigos científicos.

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