Como não poderia
deixar de ser, não existe fenômeno social isolado, e o instituto da adoção não
foge à regra. Com base nisso é impossível fechar os olhos para os estreitos
laços que as instituições garantistas de direitos infanto-juvenis traçam com os
mais variados fenômenos de nossa cultura e sociedade, e no que pecam.
É neste sentido que
devemos nos amparar nas regras do ser e do dever ser do sistema de adoção,
especialmente como reflexo da sociedade, e não mais pertinente poderia ser tal
análise senão levando em conta outra ex-colônia europeia que se desvencilhou da
metrópole para andar sobre suas próprias pernas, os Estados Unidos, nação
originalmente tão parecida com a nossa, para ver como lá funcionam os processos
adotivos e o que eventualmente fazemos de tão errado para ter este sistema extremamente
deficitário por aqui.
Não entraremos em uma
análise de direito comparado, pois os sistemas de common law e civil law são
praticamente inconciliáveis em termos de garantias, além de o fato da federação
estadunidense permitir autonomia infinitamente maior ao legislativo de seus
estados do que aqui temos, razão pela qual teríamos de abrir vistas à lei de
mais ou menos 50 estados americanos para fazer jus a completude da análise,
coisa descabida no momento.
Assim, nos resta
traçar uma análise mais objetiva sobre um questionamento bem simples: o
resultado, sem se prolongar muito.
Abaixo, as
elucidações do historiador Jacob Silverman acerca do sistema de adoção dos
Estados Unidos, devidamente comentadas.
Nos
Estados Unidos, as adoções são realizadas, na maioria dos casos, através de
agências específicas para esta finalidade, sendo que em alguns estados o
intermédio de uma agência é requerido por lei.
Após
escolhida a agência de adoção, a família que se propõe a adotar recebe várias
vistorias por parte de assistente social, própria da agência, que realiza o
“estudo do lar”, processo no qual se
avalia a capacidade do casal em prover as necessidades da eventual criança, bem
como auxilia com a instrução dos mesmos acerca do processo adotivo e prospecta
a situação de melhor viabilidade entre adotante e adotado.
Tal
estudo geralmente leva de três a seis meses, podendo ser tal prazo ainda mais
diminuto a depender da agilidade e interesse dos pais no preenchimento das etapas
do processo, o que significa providenciar documentos de praxe e agendar de
forma antecipada as diligências médicas. As entrevistas realizadas são
minuciosas, feitas com os candidatos de
forma concomitante e de forma separada, sendo que a existência de outros filhos
dentro do seio familiar também gera a necessidade de submissão destes ao
processo de entrevistas.
O exame das condições do local de habitação
dos candidatos também se dá de forma pormenorizada, sendo que o assistente
verifica todas as localidades de convívio da criança, o local onde esta
brincará, dormirá e terá suas refeições. A inspeção passa inclusive pelo crivo
de bombeiros e médicos (dependendo do estado), sendo que os próprios candidatos
podem ser submetidos a exames físicos para atestar sua capacidade de comportar
uma criança em seu lar. Também são realizados testes de aptidão psicológica,
com profissional habilitado, que levará em conta a situação e histórico do
adotante.
Em uma análise superficial, até o momento o
processo todo é muito parecido com o praticado no Brasil, com o estudo básico
das condições de inserção da criança na família que pretende acolhê-la.
Contudo, vemos diferenças gritantes em dois pontos: na profundidade da análise
feita pelos profissionais, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos, e
no lapso temporal dedicado aos estudos.
Não somente no sentido da eficiência das
mesmas ferramentas, a possibilidade de contratação de agência de adoção
privada, que conta com seus próprios profissionais habilitados, devidamente
remunerados pelo adotante, dilui sobremaneira o ônus e o custo ao Estado pela
realização de todas as diligências de estudo e desembaraço. Beneficia-se a
criança, o adotante, o Estado e ainda se cria nicho de mercado altamente
especializado e de relevante papel social para as agências. Não existe dinheiro
ou recurso perdido aqui.
Assim, nos são dados dois tapas na cara com
esta metodologia: o primeiro deles diz respeito ao conceito errôneo de que a
adoção deva ser demorada em razão da adaptabilidade limitada e lenta entre
criança e família, coisa que pode ser superada de forma célere desde que
assistida de forma competente. O segundo é em função do erro em entender
burocracia e segurança como situações sinônimas, quando o desenrolar, em que
pese a quantidade maior de etapas, é célere nos EUA, mesmo que o processo todo
seja bem mais complicado do que aqui.
Silverman traz estatísticas assombrosas acerca
da eficiência deste processo:
Aproximadamente 120.000 adoções são
realizadas nos EUA todos os anos. As adoções de crianças abrigadas atingiram o
número de 51.000, em 2002.
São 120.000
adoções/ano em um país com menos do que o dobro de nossa população e
diversidade étnica tão acentuada quanto. Não somente isso impressiona, como o
fato de número próximo a 50% destas adoções ser proveniente de “foster homes”,
ou abrigos para crianças que já possuem alguma idade e não mais são tidos como
“infants”, o que aqui se traduziria como recém-nascidos.
No Brasil ainda
convivemos com a política propagandista de que muitos dos casos de adoção são
indeferidos pois os candidatos a adotante são seletivos demais, ideia enganosa
e amplamente rebatida por diversos estudos publicados no próprio MONACI. Se
aqui a seletividade é tamanha como dizem, imagine como seria nos EUA, país com
traços discriminatórios muito mais ressaltados do que em nossa nação. No
entanto, a realidade estatística é outra.
O historiador
arremata com uma explicação da história do sistema nos Estados Unidos:
Muitos orfanatos foram criados nos EUA durante
os séculos 18 e 19, porém, ao longo do tempo, questionamentos acerca da
qualidade das condições de vivência e políticas discriminatórias surgiram, em
especial durante a época dos movimentos pelos direitos civis. Orfanatos ficaram
associados a uma imagem de maus cuidados, com ausência de qualquer forma
adequada de auxílio físico ou psicológico às crianças.
Logo
em seguida à Segunda Guerra Mundial, orfanatos caíram em franca decadência nos
Estados Unidos. A título de exemplo, na Chicago dos anos 70, estes já não
existiam mais.
A
nível nacional o país substituiu o antigo modelo de orfanatos por RTCs (centros
de tratamento residencial, na sigla anglófona). A diferença com relação ao
antigo modelo é que agora a instituição mais se assimila a um centro de
tratamento psicológico e a uma escola do que aos antigos depósitos de crianças,
como haviam se tornado – e de certo modo sempre foram – os orfanatos em si.
Note-se aqui importante diferencial com
relação às práticas brasileiras. Nos Estados Unidos a definição de orfanato é
completamente distinta da que temos aqui. Um abrigo à moda brasileira seria
conhecido como orfanato por lá, e por diversos motivos. A recreação que aqui se
dá às crianças, o acompanhamento psicológico e a educação são infinitamente negligenciados,
tanto por falta de interesse e de repasse de verbas pelo poder público quanto
pela própria falta de preparo e de estrutura das instituições.
Considerando que a
Segunda Guerra Mundial findou em 1945, o retrógrado sistema que aqui adotamos
para prática de abrigo de crianças órfãs ou afastadas de suas famílias
biológicas, entrou em franco declínio há quase 70 anos, já estando
definitivamente sepultada há mais outros bons 40 anos no mundo mais civilizado.
No frigir dos ovos, estamos defasados em quase meio século.
Uma informação ainda
mais dolorosa ao mote que vemos repetido à exaustão, de que seria o Brasil o
país do futuro: o término da Segunda Grande Guerra foi marco histórico não somente no campo da geopolítica, com a
Alemanha devolvendo as migalhas da Alsácia-Lorena aos franceses, mas
representou muito mais do que isso para os próprios Estados Unidos. Foi época
de reviravolta cultural, do levante da população por uma civilização mais
igualitária e com amplo enfoque nos direitos civis e nas reformas da educação;
foi o ponta-pé que faltava para o crescimento dos EUA como nação evoluída e
hegemônica que é hoje. Foi neste ponto que os EUA deixaram de ser uma nação
agrícola e inocente para se tornar país de liderança global. Jamais poderiam
ter feito isso sem pensar nas gerações futuras, na mais basilar das garantias
que é a afirmação de mínimas condições de crescimento e desenvolvimento aos
novos americanos, e nessa seara entraram as crianças órfãs, desamparadas, que
agora, em pleno manifesto pelos direitos civis, não mais poderiam quedar em
negligência.
No nosso protótipo de
nação do futuro, regra tão básica ainda não passa de um sonho.
O QUE APRENDER COM ISSO?
Primeiro de tudo, que
processo adotivo é prioridade, e não suplemento, como entendem certas entidades
do judiciário ao alegar que “as crianças abrigadas estão bem onde estão”.
Medida contrária ao princípio do ECA da proteção integral e prioritária da criança\jovem, discriminatória e negligente. Enquanto figuras geniais como
Martin Luther King morreram lutando pelo fim destas discriminações irracionais e
antiprogressistas, no Brasil tais práticas são avalizadas e institucionalizadas
pelo judiciário ainda hoje.
O segundo ponto, é que
o cuidado e as diligências despendidas ao sistema adotivo não deveriam ser de competência unicamente estatal, pelo que poderia muito bem todo o processo ser aberto à
iniciativa privada, servindo a figura do Estado como instituição de homologação
de todo o processo.
Se é medo a desculpa
pelo arredio comportamento do Estado ante a proposta de se colocar a gerência de direitos
fundamentais e da personalidade nas mãos de particulares, de que modo tal
receio se justifica ante a própria e evidente incapacidade do Estado de
garantir tais direitos? Além do mais, sempre será do Estado o dever de
fiscalizar e credenciar as instituições, coisa que quiçá desempenhe com maior
competência do que a costumeira, pois fiscalizar gera tributo e tributo gera a
riqueza estatal – o que possui posição de maior destaque na hierarquia de
prioridades de nosso Estado, muito antes do interesse das crianças.
Por fim, fica claro
que a adoção é apenas um dos elementos pelos quais uma nação demonstra a que
veio, sendo sua gerência a própria previdência estatal no futuro. Abandonar uma
geração de crianças que apenas precisam de um lar e de uma família para se
tornar escolados e produtivos cidadãos é a mais evidente e inequívoca forma de
burrice, de inaptidão, de renúncia à condição de bípede. Um país que não vê em
suas crianças o futuro não verá futuro em lugar algum.
MONACI
(colaboradores)
*Jacob Silverman é formado em história pela Universidade de
Emory, Atlanta, onde ainda atua se dedicando a produção de artigos científicos.
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