segunda-feira, 25 de março de 2013

"DECISÕES POLÊMICAS NA JUSTIÇA TIRAM FILHOS DE PAIS E ENTREGAM PARA ADOÇÃO" - PROGRAMA FANTÁSTICO DA REDE GLOBO DO DIA 24 DE MARÇO

A matéria apresentada pelo PROGRAMA FANTÁSTICO de 24/03/2012 traz à tona o descompasso existente dentro do PODER JUDICIÁRIO na aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Aponta a falta de sensibilidade e razoabilidade na aplicação do ECA, ao destituir o poder familiar de forma atabalhoada e precipitada, desconsiderando que a FAMÍLIA é o núcleo da sociedade, e que o ESTADO deve envidar todos os esforços para mantê-la, inclusive dando EFETIVAS condições de manutenção da criança no seio da família biológica, sendo a adoção a alternativa ideal quando não há, de fato, atendimento mínimo material/afetivo da criança.
Esse fato, contudo, não pode justificar a MOROSIDADE nos casos de destituição do poder familiar de crianças e jovens que estão ABRIGADAS há vários anos, a exemplo do ocorre na APAV – Associação Paranaense Alegria de Viver em Curitiba (entre outros casos apresentados pelo MONACI), que abriga jovens que entraram na instituição há mais de dez anos, atingiram a idade adulta sem voltar para a família biológica, nem terem a oportunidade de entrarem na fila de adoção e terem uma nova família. O PROGRAMA FANTÁSTICO PRECISA OUVIR AS CRIANÇAS E JOVENS QUE ESTÃO SOB A TUTELA DO ESTADO, SEM RESPEITO AOS SEUS DIREITOS.

"Depois de sofrer uma depressão, mulher tem as três filhas tiradas de casa. Por causa do marido alcoólatra, outra mulher perde sete filhos de uma vez.

Depois de sofrer uma depressão, uma mulher tem as três filhas tiradas de casa por ordem da Justiça. Por causa do marido alcoólatra, outra mulher perde sete filhos de uma vez.
Quando os pais não conseguem cuidar de suas crianças, qual a melhor saída? Afastar imediatamente os filhos ou manter a família unida e buscar uma solução?
Você vai conhecer agora histórias comoventes, que dividem as opiniões de especialistas.

Elaine: Eu tive depressão pós-parto depois da minha última menina, a Evelyn, de três anos.

Elaine trabalhava numa fábrica e cuidava de outras três filhas. Evelyn, hoje com 3 anos, era a menor. Mas, quando Elaine começou a tratar da depressão, a vida em família virou um inferno.

Elaine: O tratamento, em algum período, fez efeito. Mas depois foi tudo ao contrário.

Remédio, bebida. Elaine passava mal. E ficou mal vista na cidade onde mora, Gaspar, em Santa Catarina. Como se não tivesse condições de criar as filhas, ela foi denunciada à juíza da comarca. De uma hora para outra, policiais e conselheiras bateram na casa dela.

Fantástico: As crianças estavam em casa?
Elaine: Estavam em casa, elas estavam dormindo. Elas pegaram as meninas e saíram.

As crianças foram levadas para um abrigo público. Elaine conseguia visitá-las toda semana. De repente, as visitas foram proibidas.

Elaine: Chegamos no abrigo e disseram: ‘vocês não vão ver mais as meninas’.

No abrigo, disseram que a proibição de ver as filhas tinha um motivo.

Elaine: Disseram que o meu marido estava andando na rua bêbado, não estava trabalhando e estava pedindo comida na estrada, na rua e morando embaixo da ponte.
Fantástico: E isso era verdade?
Elaine: Não, não era. Não era.

Hoje, André trabalha na construção civil, como ajudante de pedreiro.

Andre: Minhas filhas são minha vida. Minha vida. Eu batalho para conseguir as coisas, para adquirir as coisas para elas. Todo dia de manhã, elas me beijavam, me abraçavam: ‘pai, tchau, pai. Vai com Deus trabalhar’.

Lá se vão oito meses e Elaine não consegue nem notícia das filhas.

Elaine: Como eu estou passando por esse processo todo, todas as crianças que a gente vê na rua é a minha menina mais nova, é a minha menina mais velha, é a minha menina de 6 anos.

Gaspar tem 60 mil habitantes, um quinto da população de Blumenau, cidade vizinha. Mas a relação nos números de adoção é bem diferente. Nos últimos seis anos, 37 crianças de Gaspar foram adotadas. Em Blumenau, foram 34.

Elaine: E as minhas meninas, só porque eu tive essa doença e não consegui me erguer muito rápido, eles foram lá, tiraram as meninas.

A ordem de tirar os filhos de Elaine foi da juíza Ana Paula Amaro da Silveira. Durante 11 anos, até dezembro de 2012, ela atuou na comarca de Gaspar, onde se dedicou a acelerar os processos de destituição do poder familiar. O primeiro passo para a adoção.

Nós sabemos que o nosso cadastro de adoção, 90% das pessoas querem recém-nascidos até 2 anos. Nós começamos então a fazer com que os processos de destituição fossem mais rápidos e, aí, a dar uma chance real dessa criança ter uma família”, declara a juíza. 

Zilda Giacomoni: A gente começou a correr. E pega advogado aqui e ‘pelo amor de Deus, não deixa a criança ir embora, não deixa a criança ir embora’.

Zilda e Manoel são donos de uma creche em Gaspar. Cuidam de 70 crianças. Uma delas era a filha recém-nascida de um sobrinho de Manoel.

Manoel Giacomoni: Eles nos convidaram para ser padrinho e colocaram a menina na creche. Eu ia buscar ela no dia a dia, o transporte de leva e trás da creche. E a gente começou a se apegar com ela.

A mãe da menina era uma jovem de 16 anos e com problemas psicológicos. Embora a criança estivesse sob os cuidados do tio, a destituição familiar foi pedida e cumprida na porta da creche.

Manoel Giacomoni: Nós viemos buscar a Maria Eduarda e vamos levar para o abrigo.
Zilda: No mesmo dia a gente entrou com um pedido de guarda.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a preferência para a adoção é da família extensa. Quer dizer, dos parentes: tios, avós. Nem assim Manoel e Zilda conseguiram dar início ao processo.

Zilda: Ela alegou que a gente não tava inscrito no cadastro de adoção e por isso a gente não tinha direito na adoção dela.
Fantástico: A família extensa não é prioridade em um processo de adoção?
Ela é prioridade desde que essa família extensa demonstre também que tenha atenção, carinho e cuidado com essa criança”, afirma a juíza.
Manoel: Ninguém da assistente social, do fórum, veio até nós fazer uma entrevista na nossa casa, ver que tipo de pessoas que a gente era.
Zilda: A gente tem uma filha, ela tem 20 anos. Está ela está estudando arquitetura, está no terceiro semestre. E, além de estudar, ela trabalha também ajudando a gente na creche.
Letícia Giacomoni: A minha mãe, meu pai, são uma família honesta, nunca aconteceu nada assim. E eu escutava a minha mãe chorar no banheiro. Meu pai foi ficando doente.

Depois que a menina foi levada para o abrigo, não foram poucas as vezes em que Manoel e Zilda tentaram visitá-la. Mas nunca conseguiram passar do portão.
O Fantástico foi conversar com a responsável pelo abrigo, Gislane dos Santos. “Tem situações que às vezes há proibição de visitas porque realmente o processo já está se levando pra uma destituição do poder familiar. Então a gente começa a fazer o rompimento dessa vinculação com a família”, ela diz.
Acelerar processos de adoção, em muitos casos, pode levar a Justiça a cometer equívocos, diz a promotora Ellen Sanchez.
É o tempo que tem que orientar o processo. É o tempo que tem que orientar o bom senso. Porque, se a ação foi ajuizada, se todo mundo olhou, Ministério Público, advogados, equipe técnica, aí é uma decisão que traz uma segurança jurídica pra todos os envolvidos”, avalia a promotora.
Hellen Sanchez é coordenadora, no Ministério Público de Santa Catarina, do Centro de Apoio à Infância e Juventude. Segundo ela, alguns processos de destituição em Gaspar têm que ser revistos.

Ellen: Os procedimentos que estão previstos na lei, em muitos casos, não foram observados. Por isso que o Ministério Público está recorrendo.
Fantástico: Não foram observados em que sentido?
Ellen: No sentido de oportunizar a manifestação do Ministério Público, de ouvir as testemunhas que tivessem ou os familiares que tivessem o interesse em poder acolher essa criança.
Juíza: Todas as destituições são propostas pelo Ministério Público. Todas elas têm que ter o contraditório, todas.

O Ministério Público diz que, em algumas adoções e em algumas destituições, não foi ouvido. O Ministério Público não confirma essa informação.

Juíza: Então o Ministério Público está mentindo.
Fantástico: É verdade que muitos desses processos não foram sequer comunicados ao Ministério Público?
Ellen: Alguns processos em que isso aconteceu, estão sendo tomadas essas medidas judiciais para anular essa decisões.

O delicado problema da destituição familiar chama também a atenção em outras cidades do Sul do Brasil.
O Fantástico esteve em São João do Triunfo, no interior do Paraná. Há nove anos, Rivonete e Toninho tiveram sete filhos tirados de casa.

Rivonete: A pequenininha eles me tiraram do peito. Não gosto de me lembrar disso, Deus me livre.
Eram nove filhos. Apenas o mais velho, já adolescente, estava fora do alvo da Justiça. Luís, que é o segundo mais velho, diz que só não foi levado porque fugiu.
Fantástico: Você fugiu para onde?
Luis: Para o mato.
Fantástico: Mas eles foram atrás de você?
Luis: Foram atrás de mim.
Fantástico: Eles quem?
Luis: A polícia e o Conselho.
Fantástico: Conselho Tutelar.
Luis: Conselho Tutelar.

A ordem de levar as crianças era da promotora de Triunfo, Tarcila Teixeira, que, em seguida, conseguiu a destituição familiar.

Fantástico: Que tipo de risco essas crianças corriam?
Promotora: Risco de toda sorte, risco de doenças, risco de um problema com alimentação porque tinha um envolvimento com situações de uma alimentação não adequada que eu não quero entrar em detalhes.

O alcoolismo do pai seria uma das causas. Hoje, ele está em recuperação.  E, apesar do problema em casa, Rivonete tentava manter a rotina dos filhos: deixá-los na creche municipal enquanto trabalhava como faxineira.

Fantástico: E a Rivonete trazia essas crianças todo dia pra cá?
Denise: Todo dia.
Fantástico: E essas crianças apresentavam algum sinal de maus-tratos?
Denise: Não. Que eu me lembre, não mesmo.
Fantástico: E a Rivonete cuidava dos filhos direitinho?
Denise: Não sei se era o cuidado adequado para todos. Mas cuidava.

Depois que os filhos foram levados, Rivonete os visitava no abrigo público. Ela diz que foram muitos os pedidos, feitos inclusive à promotora, para tê-los de volta.

Rivonete: Eu ia lá, eu conversava, às vezes ela mandava trancar a porta. A secretária até falava: ‘olha, me desculpe, mas a doutora Tarsila falou que não tem mais nada para conversar com você sobre suas crianças’. Eu saía desesperada de lá.

Quando Rivonete perdeu a guarda de suas crianças, Luciane Micharki era conselheira tutelar em Triunfo.
O lugar onde eles moravam era um lugar inadequado, mesmo. Porque tinha um lixão aqui na cidade e eles moravam nesse lixão. Mas com todos os cuidados, principalmente da mãe. O pai era alcoólatra. Eu acho assim: o que faltava para eles era uma base, uma estrutura. Uma ajuda” lembra Luciane.
Às vezes uma família tem falhas? Sim, tem. Todos nós temos. A falha está prejudicando a criança? Então como corrigir essa falha? Por quê? Porque retirar a criança desse convívio familiar vai prejudicar muito mais a criança”, avalia o médico Nelson Arns.
Nelson Arns, representante mundial da Pastoral da Criança, trabalha com famílias que vivem dramas como o de Rivonete.
O que a lei fala é que a primeira opção tem que ser a família. Quanto mais próximo, melhor. Mas às vezes o que o juiz quer, interpretando errado a lei, não é salvaguardar a criança, é punir o pai. O alcoolismo, por exemplo, é doença, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como doença. O juiz não pode dizer ‘é sem-vergonhice do pai ou da mãe que bebe e eu vou retirar’”, explica Arns.
Os pais só perdem o direito de criar seus próprios filhos em situações comprovadas de risco à saúde, à educação, à segurança. É o que diz a lei. Nesses casos, a Justiça tem a obrigação de procurar, primeiro, os parentes mais próximos. Depois, famílias que queiram adotar, na região, no estado ou no país. A adoção internacional é a última alternativa. E foi o que aconteceu com os filhos de Rivonete e Toninho.
Os sete irmãos foram adotados no exterior. Rivonete e Toninho, hoje, moram e trabalham na chácara da dona Deusita. Os filhos que ficaram continuam por perto.

Deusita: Deram moços trabalhadores. Não fumam, não bebem. Já são casados, são bons esposos, têm uma família. E são muito apegados com os pais. Todo domingo eles vêm ali, fazem um churrasquinho, acho tão bonito. Dias desses eu disse para o meu marido: ‘veja que lindo, eles estão ali reunidinhos’. Mas ela sempre com aquele ar de tristeza, sempre falando nos filhos. Nos outros que foram.

Depois que estivemos em Gaspar, gravando esta reportagem, Zilda e Manoel conseguiram a guarda provisória da pequena Maria Eduarda. Ela já deixou o abrigo e voltou para casa.
O casal, que tem condições de contratar um advogado, finalmente vai conseguir iniciar o processo de adoção da menina.
A história de Rivonete também já tem um fim. Ela sabe que os filhos estão longe, fora do Brasil.

Rivonete: Tem que se conformar, mas não se conforma, não adianta.

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Nelson Calandra, tem uma explicação para as decisões apressadas que muitas vezes os juízes adotam: “Eu costumo dizer que a criança e o adolescente adotados não têm problemas. Quem tem problema é o adulto. Normalmente nós juízes recebemos pedidos ligados à infância e à juventude sempre em situação de emergência”.
Mas Wanderlino Nogueira Neto, representante das Nações Unidas discorda. Ele afirma que há juízes que simplesmente ignoram o que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente: “Muitos juízes ainda aplicam o velho código de menores, que tinha a forma de adoção por abandono e o abandono é falta de condições materiais para manter aquele filho. O estatuto é de 1990. Não é possível mais que os magistrados não estejam imbuídos, não conheçam o estatuto”.

Ellen: O que se tem que avaliar é se está se investindo na prevenção, quanto é investido numa criança que está acolhida institucionalmente e quanto que poderia ser destinado pra fortalecer as famílias evitando o ‘abrigamento’ dessas crianças.
Nelson Arns: É mais difícil fazer a reestruturação familiar? Sim, mas resolve.
E Elaine? A história de Elaine ainda não acabou. A depressão está sob controle. Mas a saudade... Ela e André cuidam da caçula e mantêm arrumado o quarto das outras filhas. Sem saber se elas voltarão um dia.
Agora eu estou vendo que eu estou diferente, que eu estou em condição novamente de cuidar, de sair com as minhas meninas de novo. Mas eu preciso delas. Porque não é só essa daqui que eu tenho. Eu tenho as minhas outras três meninas que eu quero perto de mim”, diz Elaine.

Publicado originalmente no G1, edição do dia 24/03/2013, atualizado em 24/03/2013 22h30.

segunda-feira, 18 de março de 2013

FOLHA DE LONDRINA: À espera de uma família


Paraná tem 3.576 crianças em abrigos e 637 aptas à adoção; um dos problemas é a demora na destituição do poder familiar, que por lei deveria ocorrer em 120 dias

Por Mariana Franco Ramos

Há 12 anos, Ana (nome fictício) aguarda que decidam o seu futuro: retornar à família biológica, com a qual não mantém contato, ou ganhar um novo lar. Acolhida na Associação Paranaense Alegria de Viver (Apav), em Curitiba, desde os 3 anos, ela representa os 44.313 meninos e meninas que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vivem hoje em abrigos ou outros estabelecimentos do gênero no Brasil.
Deste universo, aproximadamente 86% estão institucionalizados há mais de dois anos, período máximo recomendado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No Paraná, são 3.576 garotos e garotas à espera da mesma definição, número inferior apenas aos registrados em São Paulo (11.217), Minas Gerais (5.567), Rio de Janeiro (4.774) e Rio Grande do Sul (4.731).
O CNJ é responsável também pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), criado para auxiliar juízes das varas da infância e juventude na condução desses procedimentos. Da implantação do sistema, em abril de 2008, até dezembro do ano passado, um total de 1.737 adoções foi contabilizado em todo o País, sendo que 5.487 crianças e jovens, dos quais 637 paranaenses, permanecem na fila. O CNJ diz não ser possível cruzar as informações dos dois cadastros (acolhimento e adoções) e informa que a Corregedoria Nacional de Justiça estuda formas de aperfeiçoá-los.
 Soropositiva e prestes a completar 15 anos, Ana alimenta o sonho de deixar os muros da instituição onde vive. "Eu gosto daqui. Mas sempre quis ter uma família de verdade", conta a adolescente. De acordo com o CNA, porém, as chances diminuem conforme a maioridade se aproxima. O índice de interessados em adotar pessoas nessa faixa etária é de 0,05%. A maioria (95,17%) dos 29.047 pretendentes brasileiros prefere menores de 5 anos. Outras exigências, como que a criança seja branca (32,5%) ou do sexo feminino (32,6%), também costumam dificultar o processo.
 Segundo a presidente da Apav, Maria Rita Teixeira, a demora na destituição do poder familiar, que conforme a lei deveria ocorrer em 120 dias, é outro complicador. "No início, as crianças chegavam aqui muito debilitadas e a nossa preocupação era salvá-las. Mas depois sentimos que faltou brigarmos um pouquinho mais pela adoção. Algumas demoraram anos para serem destituídas, ou até para terem um número de processo", afirma.
 Mãe de três filhos, sendo dois biológicos e um "do coração", como diz, Maria Rita - que é professora e artista plástica - conta que 120 meninas e meninos com HIV já passaram pela ONG desde a fundação, em 1993. Destes, 30 foram adotados. "Hoje, pelo que sei, todas as nossas crianças estão no cadastro. Está havendo uma melhora. No entanto, perdeu-se tempo. Elas foram negligenciadas e estão pagando o preço por um erro do passado."

Formas de reduzir o tempo de 'acolhimento'

 Para a psicóloga Lidia Weber, professora doutora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autora de seis livros sobre adoção, os números do CNJ estão distantes da realidade. De acordo com ela, além das crianças inscritas no CNA, há mais 40 mil, pelo menos, disponíveis para adoção no Brasil, que são institucionalizadas. "Existem cerca de dois mil juizados no País. Você acha que todos alimentam o cadastro corretamente e diariamente? Que têm equipamentos interligados para tal?", questiona.
 Lidia defende que o CNA funcione de forma mais ágil e integrada, para que os prazos máximos de acolhimento sejam de fato cumpridos. "A lei diz que uma genitora pode ir ao juizado entregar uma criança. Ela entra imediatamente no cadastro? Não. Vai-se em busca 'até esgotar todas as possibilidades' da família extensa (irmãos mais velhos, tios ou avós). Qual é a última possibilidade? Quem decide é o juiz. E o bebê fica com mais 20 a olhar o teto de uma instituição, 24 horas por dia", critica.
 O promotor de Justiça Murillo José Digiácomo, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Paraná, alega que o trâmite existente é importante para avaliar as reais condições das pessoas de adotar. "Não é burocracia, nem mera formalidade. É necessário, porque eu não posso ser irresponsável na hora de deferir uma adoção. Estamos colocando (em uma família substituta) uma criança ou adolescente que já teve uma perda na sua vida. Não temos mais o direito de errar. Nunca temos, e nesse caso menos ainda", argumenta.
 Digiácomo afirma que o Ministério Público e o Judiciário não são contrários à adoção. No entanto, essa deve ser vista como a última das alternativas disponíveis para resolver a situação das crianças acolhidas. "O que precisa é haver políticas públicas mais abrangentes para as famílias de origem, de forma a evitarmos a destituição do poder familiar. E se tivermos que fazer isso, que seja com a rapidez necessária para que ela (criança) não fique por tempo excessivo com a situação indefinida."
 Aos casais que desejam adotar, o promotor aconselha que, antes de tudo, procurem as Varas da Infância e Juventude e realizem a habilitação. "Não tem que procurar hospital, nem entidade. Não é por um acaso que (o trâmite) está na lei. Foi colocado lá justamente para evitar os equívocos. As pessoas têm que se conscientizar que a adoção é para toda a vida."
 A reportagem procurou, no dia 28 de fevereiro, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), que intermedia o contato com as Varas da Infância e Juventude, para solicitar informações referentes às adoções realizadas no Estado. Até o fechamento desta edição, porém, o órgão não atendeu a solicitação.

 Dois anos no máximo
 Assinada em agosto de 2009 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a lei número 12.010 estabelece um tempo máximo para que os meninos e meninas fiquem em casa de acolhimento. De acordo com a legislação, que alterou o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a permanência nessas instituições não se prolongará por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao superior interesse da criança ou do adolescente.
 A nova lei da adoção também determina que os acolhidos tenham sua situação reavaliada, no máximo, a cada seis meses, "devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta".

Casal tenta adotar quatro meninas com HIV
Processo dura quase três anos; exemplo mostra que nem a flexibilidade na escolha do perfil da criança garante rapidez

 Casais flexíveis em relação ao perfil das crianças pretendidas nem sempre representam mais agilidade no processo de adoção. Desde agosto de 2010, o advogado Alberto Rau, de 55 anos, e sua esposa, Aristéia, de 48, tentam adotar quatro meninas com HIV, acolhidas em uma instituição da capital. Elas têm entre 4 e 15 anos.
 Apesar da permissão para visitar as crianças nos fins de semana e feriados, que durou até o início de 2011, a família não conseguiu a guarda provisória. "Já estávamos habilitados (no cadastro de adoção). Mesmo que a destituição familiar não estivesse concluída, (o procedimento) poderia correr concomitantemente", relata Alberto.
 De acordo com ele, a mais velha das quatro garotas chegou à organização aos seis meses. Sua irmã, que convive com o HIV foi adotada em 2003, por um casal da França, e a mãe faleceu no ano seguinte. "Ela não tem mais ninguém", conta.
 Pais de Lucas, de 20, e André, de 14, filhos biológicos, os Rau formalizaram em 2012 a adoção de Mateus, de 15, e Daniele, de 12, que durante sete anos viveram em uma instituição do Rio de Janeiro. A diferença no desenvolvimento de ambos, segundo Aristéia, já é visível. "Em novembro, quando chegou a certidão, a gente fez uma festa. Procuramos investir na questão afetiva. Eu sempre digo: 'filho, a mãe não vai apagar o que aconteceu na sua vida; se pudesse, faria. Mas como não posso resolver o que passou, quero iluminar o que virá daqui para frente'", conta.
 A ampliação da família, no entanto, não significa que o casal desistiu das quatro meninas. Como forma de tornar pública sua história e de denunciar o que chamam de descaso do Poder Judiciário, Alberto e Aristéia fundaram o Movimento Nacional das Crianças Inadotáveis (Monaci). Por meio do blog http://promonaci.blogspot.com.br/, eles postaram relatos de outros casais com dificuldades em adotar e buscam aglutinar o maior número de pessoas em torno da causa.
 Uma das ações do movimento pensadas para este ano é propor uma ação civil pública, que responsabilize o Estado por conta dos longos períodos de acolhimento. "Contratamos uma banca de advogados e vamos pedir uma indenização para as crianças que foram se apresentando ao judiciário brasileiro e que, ainda assim, permanecem abrigadas há oito, 10, 12, 14 anos. Isso é um absurdo, um crime. Hoje um profissional com formação acadêmica tem dificuldade de arrumar um emprego. Imagine esses jovens... Vai sobrar o que para eles?", indaga Aristéia Rau.

Adolescente espera 14 anos para ter nome dos pais no RG
 Um adolescente natural de Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), vive situação incômoda. Mesmo morando há mais de 14 anos com a família adotiva, ele ainda possui em seus documentos o nome da mãe biológica, com quem nunca teve contato. O casal Francisco e Adalsira Oliani conseguiu a guarda provisória de Guilherme logo após o nascimento do garoto, em 1998. No entanto, a adoção foi formalizada apenas neste ano.
 "Na época, estávamos procurando uma criança para adotar e não conseguíamos. Foi então que o médico de uma das minhas filhas falou do Guilherme e sugeriu que entrássemos com o pedido. Procuramos a juíza e, em uma semana, ele já estava conosco", explica Adalsira.
 Casada há 32 anos e mãe também de Camila, de 31, e Cecília, de 25, a dona de casa conta que, no início, recebia a visita de uma assistente social, mas que depois da guarda definitiva o processo não andou mais. "Ele ficou sonhando em carregar o nome da família. Só que isso dependia da formalização da adoção. Quando ligavam da escola, era tudo muito confuso, porque pediam para falar com a mãe biológica. Busca-se tanto o direito da criança, e meu filho teve seu direito ignorado".
 Adalsira e Francisco contrataram um advogado e, depois de muita espera, na última semana receberam a notícia de que o processo foi concluído. "Agora, estamos só esperando a documentação chegar para o Guilherme fazer o RG. Ele ficou todo faceiro. Será oficialmente um Oliani."

Matéria originalmente publicada no jornal Folha de Londrina, Domingo, 17 de março de 2013, edição 19.416, fls. 11 e 12.

quarta-feira, 6 de março de 2013

O DIREITO DE SER FILHO

por Lidia Weber*


Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o tempo em que seus ossos estão sendo formados; seu sangue está sendo feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje”.   (Gabriela Mistral)

Em 1990 o Brasil, de maneira inédita no mundo, aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerada uma das leis mais avançadas do mundo. Passaram-se 21 anos e mesmo a Lei estando na maioridade ainda não conseguiu cumprir um dos direitos fundamentais, o direito de toda criança à convivência familiar e comunitária. Os abrigos continuam repletos de crianças e adolescentes “filhos de ninguém”, nem mesmo filhos do Estado, pois a maioria dos abrigos do país é mantida com recursos privados. Viver em uma instituição significa estar alijado do direito de ser amado e de amar, relevando  o abismo entre as intenções das leis e a vida real.
Em verdade, a institucionalização de crianças tem se mostrado não como uma alternativa, mas como um incentivo ao abandono. O acolhimento institucional  acarreta mais danos do que benefícios para a maioria das crianças e adolescentes devido as muitas características negativas para o desenvolvimento do ser humano: limitação de interação da convivência social; invariabilidade do ambiente físico; planejamento das atividades externas à criança, com ênfase na rotina e na ordem; vigilância contínua; ênfase na submissão, silêncio e falta de autonomia.
O problema é tão sério que atualmente, em pleno século 21, sequer se sabe quantas crianças abrigadas existem no Brasil. Há 10 anos falava-se em, no mínimo, 500 mil crianças institucionalizadas. Em 2008 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, órgão governamental) fez uma pesquisa com todos os Abrigos que recebiam fundos federais (uma minoria diante de todos os abrigos que existem) e chegou a um numero que passou a ser repetido: 80 mil crianças e adolescentes abrigados. Em 2009 foi criado o Cadastro Nacional de Adoção, para centralizar os adotantes e as crianças e adolescentes “disponíveis para adoção”. A idéia é boa e previa uma centralização e agilização do processo. No entanto, passou a apresentar dados enviesados, pois os 80 mil abrigados desapareceram e agora fala-se que há “apenas”  5 mil crianças disponíveis” e mais de 20 mil adotantes. Alguma coisa está errada nessa conta? De repente, não se fala mais dos 80 mil abrigados que  ficaram de lado, mais uma vez no limbo do esquecimento, uma espécie de "caixa-dois" do abrigamento. Será que se não falarmos deles o problema deixará de existir? Somente aquelas crianças cujos pais foram destituídos do Poder Familiar é que entram no cadastro e sabe-se por depoimentos sistemáticos que o CNA não é alimentado pela maioria absoluta dos Juizados do país. Entre outro problemas,  já cansei de ouvir que a maioria dos operadores da adoção não faz a destituição do Poder Familiar de milhares de crianças porque não "tem perfil para serem adotadas”. A maioria dos abrigados não tem sequer processo em centenas  de abrigos. Cada abrigo que tenho visitado, ou ouvido relatos, tem cerca de 5 a 10% de crianças "disponíveis para adoção", o mesmo percentual de duas décadas atrás quando fizemos a pesquisa que gerou o livro "Filhos da Solidão".
Mas, pelo menos no início da década de 90 se falava que era preciso resolver o problema de todas as crianças e adolescentes abrigados, e atualmente o discurso mais parece um disco riscado, pois somente se fala que existem “apenas 5 mil abrigados” e “os adotantes é que são muito exigentes, só querem crianças brancas e saudáveis etc. e tal”. Tenho compilados inúmeros relatos de pretendentes à adoção que querem, sim, adotar crianças especiais, crianças maiores, crianças com HIV e mesmo assim amargam uma espera irritante e encontram dificuldades incompreensíveis em alguns Juizados do país.  Ao contrário de países desenvolvidos que praticamente extinguiram as instituições de abrigamento, em nosso país elas ainda persistem incólumes, e o lento caminhar  é acrescido de uma série de dogmas e psicologismos que vão contra as pesquisas recentes sobre o tema: "o adotante não pode visitar abrigos", "o pretendente não pode adotar se perdeu um filho", "não pode adotar crianças menores de 12 anos se for homossexual", "não pode trabalhar em um abrigo e querer adotar", "não pode adotar criança especial porque deve querer alguma coisa com isso", "não pode isso, não pode aquilo...". E as crianças continuam esperando... e sonhando em viver em família e em comunidade. Quando ficam bem grandes, depois de o sistema insistir  por muito tempo em procurar qualquer parente nesse imenso Brasil, mesmo que o parente nem conheça a criança e muito menos queira ficar com ela, algumas crianças entram para o cadastro....  
Os desafios que devemos enfrentar atualmente é não deixar as crianças envelhecer nas instituições e conscientizar os brasileiros sobre as adoções necessárias: crianças mais velhas, negras e pardas e com necessidades especiais. O trabalho principal é pedagógico, de conscientização da população e técnico, de preparação de profissionais que acolham e preparem pessoas dispostas a acolher uma criança ou um adolescente. É um trabalho gigantesco e a longo prazo, e por isso, o sistema deve apoiar e valorizar pretendentes à adoção que justamente deixam seus preconceitos de lado e mostram desejo e condições para realizar as adoções necessárias.

*Lidia Weber é professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da UFPR e do Mestrado e Doutorado em Educação pela UFPR; Psicóloga pela UFPR, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP e pós-doutora em Desenvolvimento Familiar pela UnB.

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