segunda-feira, 18 de março de 2013

FOLHA DE LONDRINA: À espera de uma família


Paraná tem 3.576 crianças em abrigos e 637 aptas à adoção; um dos problemas é a demora na destituição do poder familiar, que por lei deveria ocorrer em 120 dias

Por Mariana Franco Ramos

Há 12 anos, Ana (nome fictício) aguarda que decidam o seu futuro: retornar à família biológica, com a qual não mantém contato, ou ganhar um novo lar. Acolhida na Associação Paranaense Alegria de Viver (Apav), em Curitiba, desde os 3 anos, ela representa os 44.313 meninos e meninas que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vivem hoje em abrigos ou outros estabelecimentos do gênero no Brasil.
Deste universo, aproximadamente 86% estão institucionalizados há mais de dois anos, período máximo recomendado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No Paraná, são 3.576 garotos e garotas à espera da mesma definição, número inferior apenas aos registrados em São Paulo (11.217), Minas Gerais (5.567), Rio de Janeiro (4.774) e Rio Grande do Sul (4.731).
O CNJ é responsável também pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), criado para auxiliar juízes das varas da infância e juventude na condução desses procedimentos. Da implantação do sistema, em abril de 2008, até dezembro do ano passado, um total de 1.737 adoções foi contabilizado em todo o País, sendo que 5.487 crianças e jovens, dos quais 637 paranaenses, permanecem na fila. O CNJ diz não ser possível cruzar as informações dos dois cadastros (acolhimento e adoções) e informa que a Corregedoria Nacional de Justiça estuda formas de aperfeiçoá-los.
 Soropositiva e prestes a completar 15 anos, Ana alimenta o sonho de deixar os muros da instituição onde vive. "Eu gosto daqui. Mas sempre quis ter uma família de verdade", conta a adolescente. De acordo com o CNA, porém, as chances diminuem conforme a maioridade se aproxima. O índice de interessados em adotar pessoas nessa faixa etária é de 0,05%. A maioria (95,17%) dos 29.047 pretendentes brasileiros prefere menores de 5 anos. Outras exigências, como que a criança seja branca (32,5%) ou do sexo feminino (32,6%), também costumam dificultar o processo.
 Segundo a presidente da Apav, Maria Rita Teixeira, a demora na destituição do poder familiar, que conforme a lei deveria ocorrer em 120 dias, é outro complicador. "No início, as crianças chegavam aqui muito debilitadas e a nossa preocupação era salvá-las. Mas depois sentimos que faltou brigarmos um pouquinho mais pela adoção. Algumas demoraram anos para serem destituídas, ou até para terem um número de processo", afirma.
 Mãe de três filhos, sendo dois biológicos e um "do coração", como diz, Maria Rita - que é professora e artista plástica - conta que 120 meninas e meninos com HIV já passaram pela ONG desde a fundação, em 1993. Destes, 30 foram adotados. "Hoje, pelo que sei, todas as nossas crianças estão no cadastro. Está havendo uma melhora. No entanto, perdeu-se tempo. Elas foram negligenciadas e estão pagando o preço por um erro do passado."

Formas de reduzir o tempo de 'acolhimento'

 Para a psicóloga Lidia Weber, professora doutora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autora de seis livros sobre adoção, os números do CNJ estão distantes da realidade. De acordo com ela, além das crianças inscritas no CNA, há mais 40 mil, pelo menos, disponíveis para adoção no Brasil, que são institucionalizadas. "Existem cerca de dois mil juizados no País. Você acha que todos alimentam o cadastro corretamente e diariamente? Que têm equipamentos interligados para tal?", questiona.
 Lidia defende que o CNA funcione de forma mais ágil e integrada, para que os prazos máximos de acolhimento sejam de fato cumpridos. "A lei diz que uma genitora pode ir ao juizado entregar uma criança. Ela entra imediatamente no cadastro? Não. Vai-se em busca 'até esgotar todas as possibilidades' da família extensa (irmãos mais velhos, tios ou avós). Qual é a última possibilidade? Quem decide é o juiz. E o bebê fica com mais 20 a olhar o teto de uma instituição, 24 horas por dia", critica.
 O promotor de Justiça Murillo José Digiácomo, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Paraná, alega que o trâmite existente é importante para avaliar as reais condições das pessoas de adotar. "Não é burocracia, nem mera formalidade. É necessário, porque eu não posso ser irresponsável na hora de deferir uma adoção. Estamos colocando (em uma família substituta) uma criança ou adolescente que já teve uma perda na sua vida. Não temos mais o direito de errar. Nunca temos, e nesse caso menos ainda", argumenta.
 Digiácomo afirma que o Ministério Público e o Judiciário não são contrários à adoção. No entanto, essa deve ser vista como a última das alternativas disponíveis para resolver a situação das crianças acolhidas. "O que precisa é haver políticas públicas mais abrangentes para as famílias de origem, de forma a evitarmos a destituição do poder familiar. E se tivermos que fazer isso, que seja com a rapidez necessária para que ela (criança) não fique por tempo excessivo com a situação indefinida."
 Aos casais que desejam adotar, o promotor aconselha que, antes de tudo, procurem as Varas da Infância e Juventude e realizem a habilitação. "Não tem que procurar hospital, nem entidade. Não é por um acaso que (o trâmite) está na lei. Foi colocado lá justamente para evitar os equívocos. As pessoas têm que se conscientizar que a adoção é para toda a vida."
 A reportagem procurou, no dia 28 de fevereiro, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), que intermedia o contato com as Varas da Infância e Juventude, para solicitar informações referentes às adoções realizadas no Estado. Até o fechamento desta edição, porém, o órgão não atendeu a solicitação.

 Dois anos no máximo
 Assinada em agosto de 2009 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a lei número 12.010 estabelece um tempo máximo para que os meninos e meninas fiquem em casa de acolhimento. De acordo com a legislação, que alterou o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a permanência nessas instituições não se prolongará por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao superior interesse da criança ou do adolescente.
 A nova lei da adoção também determina que os acolhidos tenham sua situação reavaliada, no máximo, a cada seis meses, "devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta".

Casal tenta adotar quatro meninas com HIV
Processo dura quase três anos; exemplo mostra que nem a flexibilidade na escolha do perfil da criança garante rapidez

 Casais flexíveis em relação ao perfil das crianças pretendidas nem sempre representam mais agilidade no processo de adoção. Desde agosto de 2010, o advogado Alberto Rau, de 55 anos, e sua esposa, Aristéia, de 48, tentam adotar quatro meninas com HIV, acolhidas em uma instituição da capital. Elas têm entre 4 e 15 anos.
 Apesar da permissão para visitar as crianças nos fins de semana e feriados, que durou até o início de 2011, a família não conseguiu a guarda provisória. "Já estávamos habilitados (no cadastro de adoção). Mesmo que a destituição familiar não estivesse concluída, (o procedimento) poderia correr concomitantemente", relata Alberto.
 De acordo com ele, a mais velha das quatro garotas chegou à organização aos seis meses. Sua irmã, que convive com o HIV foi adotada em 2003, por um casal da França, e a mãe faleceu no ano seguinte. "Ela não tem mais ninguém", conta.
 Pais de Lucas, de 20, e André, de 14, filhos biológicos, os Rau formalizaram em 2012 a adoção de Mateus, de 15, e Daniele, de 12, que durante sete anos viveram em uma instituição do Rio de Janeiro. A diferença no desenvolvimento de ambos, segundo Aristéia, já é visível. "Em novembro, quando chegou a certidão, a gente fez uma festa. Procuramos investir na questão afetiva. Eu sempre digo: 'filho, a mãe não vai apagar o que aconteceu na sua vida; se pudesse, faria. Mas como não posso resolver o que passou, quero iluminar o que virá daqui para frente'", conta.
 A ampliação da família, no entanto, não significa que o casal desistiu das quatro meninas. Como forma de tornar pública sua história e de denunciar o que chamam de descaso do Poder Judiciário, Alberto e Aristéia fundaram o Movimento Nacional das Crianças Inadotáveis (Monaci). Por meio do blog http://promonaci.blogspot.com.br/, eles postaram relatos de outros casais com dificuldades em adotar e buscam aglutinar o maior número de pessoas em torno da causa.
 Uma das ações do movimento pensadas para este ano é propor uma ação civil pública, que responsabilize o Estado por conta dos longos períodos de acolhimento. "Contratamos uma banca de advogados e vamos pedir uma indenização para as crianças que foram se apresentando ao judiciário brasileiro e que, ainda assim, permanecem abrigadas há oito, 10, 12, 14 anos. Isso é um absurdo, um crime. Hoje um profissional com formação acadêmica tem dificuldade de arrumar um emprego. Imagine esses jovens... Vai sobrar o que para eles?", indaga Aristéia Rau.

Adolescente espera 14 anos para ter nome dos pais no RG
 Um adolescente natural de Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), vive situação incômoda. Mesmo morando há mais de 14 anos com a família adotiva, ele ainda possui em seus documentos o nome da mãe biológica, com quem nunca teve contato. O casal Francisco e Adalsira Oliani conseguiu a guarda provisória de Guilherme logo após o nascimento do garoto, em 1998. No entanto, a adoção foi formalizada apenas neste ano.
 "Na época, estávamos procurando uma criança para adotar e não conseguíamos. Foi então que o médico de uma das minhas filhas falou do Guilherme e sugeriu que entrássemos com o pedido. Procuramos a juíza e, em uma semana, ele já estava conosco", explica Adalsira.
 Casada há 32 anos e mãe também de Camila, de 31, e Cecília, de 25, a dona de casa conta que, no início, recebia a visita de uma assistente social, mas que depois da guarda definitiva o processo não andou mais. "Ele ficou sonhando em carregar o nome da família. Só que isso dependia da formalização da adoção. Quando ligavam da escola, era tudo muito confuso, porque pediam para falar com a mãe biológica. Busca-se tanto o direito da criança, e meu filho teve seu direito ignorado".
 Adalsira e Francisco contrataram um advogado e, depois de muita espera, na última semana receberam a notícia de que o processo foi concluído. "Agora, estamos só esperando a documentação chegar para o Guilherme fazer o RG. Ele ficou todo faceiro. Será oficialmente um Oliani."

Matéria originalmente publicada no jornal Folha de Londrina, Domingo, 17 de março de 2013, edição 19.416, fls. 11 e 12.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Continue a leitura:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...