quinta-feira, 15 de maio de 2014

Especial Gazeta do Povo: "Condenados ao abandono"

  Finalizando a excelente série de três matérias sobre a adoção de autoria do repórter Felippe Aníbal e publicadas no jornal Gazeta do Povo, transcreve-se a publicação"Condenados ao abandono".
 O MONACI, que há anos reivindica e luta pelos direitos e pela visibilidade dos inadotáveis perante a sociedade e o judiciário apresenta à Gazeta do Povo e ao repórter Felippe Anibal seus mais sinceros parabéns e congratulações pela espetacular matéria veiculada, a qual pede vênia para transcrição integral neste espaço.
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Condenados ao abandono

Contrariando a legislação, 62% dos adolescentes acolhidos em Curitiba permanecem nas instituições até chegarem à maioridade
Daniel Castellano/ Gazeta do Povo / Número de acolhidos em Curitiba segue uma tendência nacional de alto índice de abrigamento
Seis em cada dez adolescentes que vivem em casas de acolhimento de Curitiba estão fadados a permanecer nas instituições até atingirem a maioridade. Na letra fria das estatísticas, 145 desses jovens – com idades entre 12 e 18 anos – são classificados como “sem possibilidade de desacolhimento”: não podem voltar a viver com pais ou familiares e dificilmente serão adotados.


Os números seguem uma tendência nacional, que escancara o alto índice de abrigamento do país. Escondem histórias de indivíduos fortes – de quem teve de, desde muito cedo, conviver com a rejeição –, mas revelam a necessidade urgente de políticas para preparar esses jovens para a fase pós-abrigo.
O levantamento é feito pelo programa piloto “Desacolher também é pro­teger”, do Conselho de Su­pervisão dos Juízos de Infân­cia e Juventude do Paraná (Consij-PR). O grupo promoveu um pente-fino na situação processual de cada adolescente acolhido em Curitiba e deve, até a metade do ano, finalizar a análise da situação das crianças.
Assim que a apuração for concluída, o conselho pretende agilizar a adoção ou o retorno à família dos jovens que estiverem aptos para isso. Caso isso não seja possível, irão sugerir programas e parcerias para que os “sem possibilidade de desacolhimento” não fiquem esquecidos nos abrigos. O órgão deve estimular o poder público, empresas e associações a promoverem ações voltadas à qualificação e à colocação profissional desses jovens.
“É preciso um trabalho para que eles, ao atingirem os 18 anos, tenham autonomia para dar início à vida adulta, com encaminhamento profissional e educacional”, resume o presidente do Consij-PR, desembargador Fernando Wolff Bodziak. O próprio Tribunal de Justiça já estuda um programa de estágio voltado aos acolhidos.
A necessidade de políticas direcionadas a esses jovens se torna ainda mais evidente quando os dados são estratificados. Do total de adolescentes abrigados em Curitiba, 62% estão nas instituições há mais de dois anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) fixa em dois anos o prazo máximo de permanência.
A realidade corrobora o que os números apontam. Na Casa Acácias, instituição localizada no Hauer, dos dez acolhidos, oito estão sem possibilidade de deixar o abrigo. Os outros dois estão com o processo de retorno à família em andamento, mas não querem voltar a viver com os pais. Apenas dois trabalham. Quatro batalham por emprego, mas sem experiência e especialização, veem as portas se fecharem.
“A gente percebe que faltam oportunidades e direcionamento desses jovens a um emprego. Eles só precisam de uma chance”, diz Marlene Garcia de Andrade, gestora da casa.
Paraná é o quinto estado no ranking
Em números absolutos, o Paraná é a quinta unidade da federação com mais crianças e adolescentes acolhidos em instituições. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até o fim de março, 3.504 jovens viviam em abrigos no estado. São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul lideram a lista. O CNJ disse não ter dados específicos das capitais.
Por um lado, o acolhimento em abrigos indica que os jovens estão, de alguma forma, amparados materialmente. Por outro, por melhor que seja, uma instituição jamais substituirá uma família. Nos acolhimentos, a regra é o desamparo emocional.
Medida
Além disso, o acolhimento é uma medida protetiva provisória. Segundo o ECA, a prioridade deve ser tentar restaurar o vínculo da criança ou adolescente com a família. Caso não seja possível, deve-se dar encaminhamento à adoção. A permanência por tempo excessivo nas instituições revela que algo não vai bem.
A psicóloga e pesquisadora Lídia Weber avalia que uma série de fatores contribui para a “permanência” dos adolescentes nos abrigos. Entre eles, a demora no encaminhamento das crianças à adoção. De acordo com o ECA, a situação processual de cada acolhido deve ser revisada a cada seis meses, o que não ocorre. A especialista ressalta a necessidade de se olhar para esses jovens com urgência.
“Como alguém que morou a vida toda numa instituição vai sair e ter autonomia? Não tem. Nós não podemos achar isso normal”, diz. “Todo o processo de acompanhamento dos casos e de direcionamento à adoção precisa ser mais ágil, porque isso está diretamente ligado ao problema”, conclui.
Busca por emprego aflige os mais velhos
Daniel Castellano/ Gazeta do Povo / Ivan*, 16 anos, retomou as buscar por um emprego
Com a carteira de trabalho nas mãos e cheio de esperança, Ivan*, 16 anos, retomou as buscas por um emprego. Ele já percorreu o Centro de Curitiba algumas vezes distribuindo currículos, na expectativa de ser chamado. O rapaz vive há 11 anos na Casa Acácias. Neste período, frequentou só um curso de informática e um programa de menor aprendiz. Deve concluir o ensino médio ainda neste ano. Por causa da baixa qualificação, não faz grandes exigências quanto ao futuro trabalho. “O que vier está bom”, sintetiza.
Ivan conta que não tem ideia de como vai ser a vida pós-abrigo. A permanência só é permitida até os 18 anos. Sem ter frequentado um bom curso profissionalizante, se sente sem respaldo para caminhar com as próprias pernas. “Apesar do apoio da casa, não temos muito rumo. Me preocupo com a vida adulta.”
Além de Ivan, outros três adolescentes da Acácias procuram emprego. Todos miram o exemplo de Fábio*, de 17 anos. Ele participou por dois anos do programa de aprendizes da Oi, conseguiu poupar um dinheirinho e, agora, se prepara para frequentar um cursinho pré-vestibular. “Quero passar em Psicologia e trabalhar com crianças que foram abandonadas”, diz o jovem vaidoso, de cabelos bem penteados.
Além da falta de auxílio, as crianças e adolescentes que vivem em instituições esbarram em um obstáculo invisível: o preconceito. “As pessoas te olham diferente. Você é visto como ‘o órfão’. Eles preferem quem vem de uma família normal”, diz Fábio. Por causa dos “olhares diferentes”, Ivan tirou do currículo o fato de viver em uma instituição. “Depois que conseguir o emprego, eu conto ao patrão. Mas agora, não quero arriscar.”.
*Nomes fictícios.

R$ 735 mensais por criança acolhida são repassados pela prefeitura de Curitiba a oito instituições de acolhimento oficiais, do próprio município, e a 43 outras instituições conveniadas. Estuda-se ampliar o valor a partir de maio.

OPORTUNIDADES
Curitiba quer ampliar participação da iniciativa privada
Apesar de contar com unidades de acolhimento próprias e conveniadas e de oferecer programas e cursos profissionalizantes, a Fundação de Ação Social (FAS), da prefeitura de Curitiba, quer ampliar a participação da iniciativa privada na rede de proteção aos jovens acolhidos. “Isso gera uma sensação de responsabilização na sociedade, que passa a ficar envolvida no processo. A iniciativa privada pode abrir outras oportunidades a essas crianças e adolescentes que o poder público não poderia oferecer”, diz a presidente da FAS, Márcia Fruet.
Um dos principais programas da prefeitura é o “Adolescente Aprendiz”, em que os jovens podem passar um período em uma empresa, aprendendo cada função. São 1.720 vagas oferecidas, prioritariamente, a jovens em vulnerabilidade social. Além de cursos profissionalizantes, como os de Liceus de Ofício, a FAS deve lançar ainda neste ano cursos de idiomas voltados a esses adolescentes. “O nosso foco é dar suporte para que este jovem seja inserido no mercado de trabalho”, explica Márcia.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Especial Gazeta do Povo: Por que a “conta” da adoção não fecha

  Em continuidade a série de três matérias sobre a adoção magistralmente redigidas pelo repórter Felippe Aníbal e publicadas no jornal Gazeta do Povo, transcreve-se a publicação lançada no dia 14 de abril de 2014, com a temática focada nos números do processo adotivo: o porquê de não se catalizar o grande número de adotantes e de adotandos em bem sucedidas, céleres e felizes adoções.
 O MONACI, que há anos reivindica e luta pelos direitos e pela visibilidade dos inadotáveis perante a sociedade e o judiciário apresenta à Gazeta do Povo e ao repórter Felippe Anibal seus mais sinceros parabéns e congratulações pela espetacular matéria veiculada, a qual pede vênia para transcrição integral neste espaço.
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Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Demora da Justiça em fazer a destituição familiar prejudicou adoção dos seis irmãos

Por que a “conta” da adoção não fecha

Perfil desejado pelas famílias e lentidão nos processos retardam adoções e lotam instituições de acolhimento
Por Felippe Aníbal
A esperança de crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhimento diminui à medida que o tempo avança. Essa realidade se opõe aos números que, à primeira vista, formariam uma equação perfeita: o Paraná tem 653 jovens aptos a ir para uma nova família e quase 3 mil acolhidos em abrigos. Enquanto isso, há cerca de 5 mil pretendentes habilitados a adotar. Então, por que a conta não fecha? Entre as respostas, estão o perfil buscado pelas famílias e a demora em habilitar as crianças à adoção. O acolhimento – definido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como medida protetiva provisória – acaba se tornando algo permanente.
Andre Rodrigues/Gazeta do Povo / Alberto e Aristeia com os filhos Lucas, André, Mateus e Daniele
Nos abrigos, a maioria absoluta é de acolhidos que não são mais crianças. Em Curitiba, 84% dos aptos à adoção têm mais de 11 anos. Os que têm entre 11 e 15 anos correspondem a 66% do total, e 18% têm mais de 15 anos. São meninos como Roberto*, 13 anos. Filho de uma usuária de crack, ele vive em uma instituição de acolhimento de Curitiba desde que se conhece por gente. Louco por futebol, o garoto de poucas palavras perdeu a esperança de conseguir um lar. “É mais fácil eu ser atacante de time grande do que ser adotado”, resumiu.

Apesar de os índices curitibanos serem maiores que as médias nacionais, a rejeição aos adolescentes abrigados não é exclusividade. Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) ajudam a entender por que essas moças e rapazes lotam as unidades de acolhimento. Menos de 1% das famílias habilitadas no Brasil têm interesse em ficar com uma criança que tenha mais de 8 anos. A possibilidade de um jovem com idade entre 13 e 16 anos ser adotada é próxima de zero.
Outras condicionantes também têm peso. Das famílias pretendentes brasileiras, 80,5% não aceitam adotar irmãos. Quase 30% só aceitam crianças ou adolescentes da cor branca. Na Região Sul, a restrição é ainda pior: 41% querem apenas filhos adotivos brancos. “Os casais ainda desejam uma menina loira e de olhos azuis. É incompatível”, resumiu o desembargador Fernando Wollf Bodziak.
Mas não é só o perfil que explica o fenômeno. Um aspecto do próprio ECA contribui para o grande índice de abrigamento: a prioridade deve ser sempre tentar a reintegração familiar, ou seja, viabilizar o retorno das crianças às famílias biológicas. Só depois de esgotadas as possibilidades é que elas podem ser encaminhadas à adoção. Quando isso ocorre, já é tarde. Elas já estão “velhas”.
Para a psicóloga e pesquisadora Lídia Weber, falta agilidade do Judiciário em localizar na fila os interessados em adotar os mais velhos. “Existe universo para adotar todos. Mas é preciso que as autoridades façam uma busca ativa, que localizem esses interessados no cadastro. O que não pode é cruzar os braços e manter esses adolescentes num limbo”, disse.
*Nomes fictícios
Apesar da idade, Mateus e Daniele foram adotados
Em agosto de 2011, quando o casal curitibano Alberto e Aristeia Rau entrou em uma instituição no Rio de Janeiro, foi recebido pelos sorrisos dos irmãos Mateus, então com 13 anos, e Daniele, com 10. Foi paixão à primeira vista. Dias depois, os meninos embarcaram para Curitiba. A adoção dos dois fugiu à tendência observada em todo o Brasil. Os irmãos são negros e tinham idade considerada avançada.
Os irmãos adotados se adaptaram à rotina da casa de Alberto e Aristeia. Mateus e Daniele se dão bem com os novos irmãos, Lucas, 21 anos, e André, 15 anos, filhos biológicos dos Rau. O flamenguista Mateus tem se inclinado mais ao esporte e à informática. Daniele, às artes: toca violão e se arrisca na pintura.
Nos fins de semana, os dias são de casa cheia, churrascos e gargalhadas. “A adoção tardia exige força e dedicação integral, porque os jovens já vêm cheios de hábitos e de experiências. Mas o amor compensa tudo”, finalizou Aristeia.
Obstáculos
Morosidade da Justiça faz crianças envelhecerem em abrigos, diz ativista
Para ativistas e gestoras de casas de acolhimento, o grande número de adolescentes em instituições tem relação direta com a demora do Poder Judiciário em analisar os processos e no encaminhamento das crianças à adoção. Hoje, apenas um quinto dos acolhidos no Paraná está apto a ser adotado.
Jovens que chegaram ainda bebês às instituições e que ainda não estão disponíveis à adoção contam-se aos montes. Isso indica uma falha grave, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que o processo de destituição do poder familiar ocorra em até 120 dias. O estatuto também fixa em dois anos o período máximo de permanência em abrigos.
“Demoram anos para destituir o poder familiar. Quando vai para a adoção, a criança já não é mais criança. A morosidade da Justiça faz as crianças envelhecerem nos abrigos”, definiu Aristeia Moraes Rau, criadora do Movimento Nacional das Crianças Inadotáveis (Monaci). Gestoras de outras duas instituições de acolhimento endossam esses argumentos.
O juiz Sérgio Kreus, da Vara de Infância e Juventude de Cascavel, explica que o processo é demorado por causa de seus trâmites, para garantir a ampla defesa aos pais. “A lei exige que sejam esgotadas todas as possibilidades de reintegração familiar. Muitas vezes os municípios e o próprio Judiciário não têm equipes técnicas suficientes e preparadas para promover a reintegração rápida e, quando esta se mostra inviável, de promover a avaliação e sugerir a destituição”, afirmou. “É preciso investir em pessoal e em capacitação”.
Conformados
Irmãos moram há 11 anos em abrigo
Os sorrisos muito parecidos entregam logo: os seis jovens são irmãos. Unidos, cultivam sonhos diferentes. A mais nova, Mariana*, 14 anos, por exemplo, sonha ser jogadora de futebol. Vai muito bem na zaga. Os gêmeos Fernando* e Francisco*, 16 anos, gostam de rap, skate e bonés de aba reta. Seria mais uma família “convencional”, se há 11 anos não vivessem na Casa de Apoio Acácias, em Curitiba.
A alegria dá lugar a semblantes fechados quando se fala em adoção. Evitam falar do assunto. Adolescentes, negros e com vários irmãos, os jovens sabem que não têm o perfil buscado por quem quer adotar uma criança. “Para a gente já não faz diferença. A gente cresceu aqui e a vida aqui até que é boa. Tem tudo que a gente precisa”, minimizou Fernando.
Os anos que passaram no abrigo não lhes apagaram uma história de vida traumática. Antes do acolhimento, viviam nas ruas com o pai, catando papelão e dormindo ao relento. Nem sequer iam à escola. Meses antes, a mãe havia abandonado a família, por não suportar as seguidas surras que o marido – e pai das crianças – lhe dava.
“Fizeram uma festa porque aqui tem tevê e eles raramente viam”, relembrou a gestora da casa, Marlene Andrade. Segundo ela, nunca apareceram interessados em adotá-los. “Houve muita demora da Justiça na destituição do poder familiar. Com isso, envelheceram e as chances diminuíram”, disse.
No acolhimento, passaram a frequentar a escola e a fazer cursos. Mariana foi coralista e sabe tocar violino. O mais velho dos irmãos, Ricardo*, de 19 anos, trabalha em um cartório. Daiana*, de 15 anos, acaba de concluir o Ensino Médio e começou a trabalhar em uma creche. “A nossa recompensa é ver casos como o deles, em que as crianças crescem na vida”, definiu Marlene.

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