sábado, 28 de maio de 2011

A (i)limitada capacidade do Direito Penal frente às violências cometidas contra crianças e adolescentes

O texto a seguir foi desenvolvido e apresentado pela advogada e doutora em Direito, Priscilla Placha Sá, durate evento sobre “Violência sexual contra crianças e adolescentes: aspectos psicológicos e jurídicos”, tema do evento que a Comissão da Criança e do Adolescente da OAB Paraná promoveu no dia 18/05/2011. O MONACI esteve presente e também participou, denunciando que uma das piores violências praticadas contra a criança e o adolescente, principalmente àqueles portadores de HIV e que se encontram abrigados, é o descumprimento da legislação protetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente.


Confesso que, seguindo as recomendações da Presidente da Comissão da Criança e do Adolescente, sobre a abordagem que se deveria dar ao tema, deparei-me com certa dificuldade, eis que – imaginei eu – o quanto
seria cansativo e até mesmo pouco produtivo – diante de tão relevante tema – cair naquilo que já pode ser
um olhar convencional – da ótica jurídica – acerca da violência sexual em face das crianças e dos
adolescentes, ou mesmo seguir a linha exclusivamente jurídica (pois que insuficiente e limitada).
Escuto, então, a notícia de que uma mãe, nos Estados Unidos, perdeu a guarda de sua filha de 8 anos, porque havia submetido esta criança a uma cirurgia de colocação de botox no rosto para tirar alguma rugas pouco estéticas e assim poder concorrer com melhor êxito nos concursos de misses infantis. Segue a notícia,
contando que a menina, ouvida pelo Juiz, ou seja lá por quem for, narrava que, de fato, não era de bom tom
que uma miss tivesse as tais rugas. Verdade ou mentira, imaginei que este podia ser o fio da meada para a
nossa conversa de hoje.
Quando se fala em violência contra crianças e adolescentes (inclusive a sexual), as figuras jurídicas que vêm
a nossa mente são homicídios, lesões corporais, estupros, torturas, muito porque elas constituem a dimensão
do real (daquilo que se vê) como se isso fosse a demonstração do simbólico. Mas, nas estatísticas oficias –
com toda a ressalva que faço acerca da confiabilidade nos números e de como são eles manipulados no que
são e no que significam, não entram e não são consideradas – mesmo no modelo de crime (não que isto
tenha sua eficiência, como veremos adiante) – toda a sorte de violências que somos capazes de impor às
crianças e aos adolescentes: inscrever nossas crianças em penosos concursos de misses (se eles são
deletérios para mulheres adultas, imagine para as pequenas); propiciar-lhes o espetáculo dantesco de uma
hipervalorização da sexualidade, do culto ao corpo, e da estética; a imposição de um modelo consumista,
substituindo as presenças do afetivo pelo mercadológico, ditado pelos passeios nos shoppings centres, nos
hipermercados e nos demais paraísos do consumo delirante; a modelagem de comportamentos de
infantilização tardia de adultos (os pais que querem ser adolescentes eternos) e a adultização precoce de
crianças e adolescentes (apenas no que é interessante, normalmente num comportamento sensual), entre
outros.
No limite, é aqui que quero centrar minha abordagem: na questão do modelo social baseado na ausência
completa de regras, onde a felicidade e o prazer constituem o modelo hedonista de busca desenfreada por
algo além, nem que seja usando e abusando de crianças e adolescentes.
E é isso que gera, em meu sentir, como já se teorizou a larga, uma vulnerabilidade de crianças e de
adolescentes como vítimas de crimes; a sociedade de tecnologia e da informação instantânea, que nos
permitirá, dentro em pouco, viver eternamente (jovem é claro!!!), passar férias em Marte, comprar tudo o
que os cartões de crédito puderem pagar, acaba por se constituir em uma geratriz de perversões, que vitimam

Cada vez mais pessoas e cada vez mais crianças e adolescentes. O senso de comunidade que medeia o desejo de liberdade e a sensação de segurança precisa ser resgatado.
Não se pode dizer que as violências contra as crianças e os adolescentes são o fenômeno desta
hipermodernidade, mas – como ela – tudo parece ter ficado hiperbólico. Ao lado das violências que acima
referi, há outras, que se constituem em uma dupla violação, pois além de olhar para a vulnerabilidade
infantil ou adolescente, aliam algum outro fator vitimizante: são crianças e adolescentes que sofrem com o
trabalho escravo, que são produto de troca para que seus pais tenham o que comer, que são a mão-de-obra
do tráfico de entorpecentes e do tráfico de armas, facilmente substituíveis pouco reivindicativas, são aquelas
que estão encarceradas sob um argumento pedágico-educativo, são aquelas que estão asiladas e internadas,
são as que aguardam indefinidamente pela adoção, são aquelas que já morreram antes de nascer.
A pergunta é: Como uma sociedade (que não é só a brasileira) pode se dizer civilizada quando é a
barbárie que coordena nossas ações? Como somos capazes de violar nossas crianças?
Este panorama sombrio que parece ter sido tão bem retratado na película Como nascem os anjos, tem se
alargado por uma série de fatores que quero referir diante dos quais, lamento dizer, o direito e especialmente
o direito penal tem pouco o que fazer.
Rápidas inserções históricas (mesmo distantes) nos permitiriam dizer que fomos, ao longo de todos estes
milhares de anos, muito pouco hábeis ou quiçá sensíveis, com a questão da infância e adolescência. É assim
possível dizer que as investidas sexuais (que categorizamos como bárbaras na época medieval) e o trabalho
escravo (da revolução industrial) que deveriam ser o produto de um tempo “involuído”, que não sabia como
tratar suas crianças e seus adolescentes, parecem nos assombrar cada vez mais.
Nos textos L’Uomo Delincuente, de Cesare Lombroso, e Menores e Loucos no Direito Penal, de Tobias
Barreto, temos mesmo um exemplo de que crianças e adolescentes eram tidas como perigosas e diabólicas,
cheias de ardis e artimanhas próprias para induzir e fazer embustes aos adultos. A dicotomia menor e maior
já se ensaiava e o que os diferenciava unicamente era o tamanho, uma questão de escala apenas.
Passos à frente, em nosso país, falamos em uma Constituição cidadã, num belíssimo discurso sobre a
igualdade e – no que concerne ao nosso tema – a idéia de proteção integral que faz nascer o Estatuto da
Criança e do Adolescentes. “ECA” de verdade para alguns, assunto indigesto para outros, que se espraiou
com a pecha de que foi a amarra para que pudéssemos “colocar na linha” as crianças e os adolescentes que,
segundo se ouve, agora podem tudo.
O fato é que a idéia de proteção integral e de peculiar condição de desenvolvimento ainda é um texto que
não saiu do papel. E no jogo de empurra próprio das estratégias da gente grande é fácil dizer que o problema
é dos pais, ou da escola ou do governo. A doença social, a demência que nos invade e que colapsa a nossa
capacidade de refletir sobre o prenúncio do que pode ser o nosso próprio fim, é sintomática, em particular,
quanto à falta de capacidade que temos de assumir nossas responsabilidades.
Não é no direito que encontraremos uma explicação possível para a violência contra as crianças e os
adolescentes, especialmente a sexual. Mas seria ele quem nos ofertaria a solução para o problema? Nem
explicação e nem solução o direito é capaz de nos dar.
A explicação para a violência sexual de que se fala aqui é algo que demandaria um saber e um olhar sobre o
modo de vida que a comunidade admite como possível e assim seria como se disséssemos que é possível
aceitar estas violências. O modelo hedonista e do prazer ilimitado (e não falo aqui de um prazer unicamente
sexual) ditado por essa sociedade que se coordena pela ausência de Lei (digo Lei como aquilo que nos
limita) e que deixa que o indivíduo se escape sozinho, que se contente com objetos de prazer e não com
pessoas. Com o objeto é capaz de se fazer tudo, preencher – como se diz em psicanálise – todos os furos:
não há do que se escapar. As discussões em torno dos relatos do Marques de Sade são um bom começo para
pensarmos nos escândalos de uma sociedade de corte que começa a se dizer civilizada. A castidade e a
pureza são valores virtuosos que se pretende surrupiar na calada da noite, com sofrimento, com violência,
com violações.
O fato é que se não há uma Lei que nos impõe limites, que é capaz de conter o sujeito, que não é um sujeito
desejante e sim um sujeito sem limites, ele agirá ilimitadamente. Se podemos dizer que na modernidade
estes sujeitos ditos, então, perversos eram a exceção, pois dominariam os modelos dos neuróticos (a maioria
de nós, com nossas manias e nossos tocs) ou esquizofrênicos (os que vêem o telefone vermelho e criam um
mundo paralelo e persecutório), na pós ou na hipermodernidade passa a dominar este modelo perverso, daí
que já se escreveu que a sociedade é uma fábrica de perversões.
A anomia social e os sujeitos anônimos criam a um só tempo mais delinquentes e mais vítimas. De um lado,
sujeitos sem laços comunitários e sociais têm menos rugas para se prenderem e esta liberdade plena permite
que sejam mais desejantes e menos limitados, assim suas ações não são vistas por eles mesmos como
violadoras de normas, eles conhecem poucas normas e respeitá-las não é um valor, desconhecem o afeto e a
fraternidade. Assim, cometer delitos com violência evidente é algo – de certo modo – natural. De outro lado,
sujeitos sobre quem não se tem cuidado são mais facilmente vitimados, pois sobre eles não se exerce
nenhum cuidado, nenhuma vigilância, nenhum afeto.
Aqui mesmo poderia acabar nossa conversa: a anomia social, a falta de senso comunitário e o desprestígio às
experiências de tolerância e de afeto, seriam suficientes para mostrar que o “x” desta questão é bem mais
nodoso do que a delegação de soluções penais.
Mas é nelas, nas leis penais, que se deposita toda a carga e toda a esperança de um mundo melhor, elas
representam o bálsamo para a solução da criminalidade e da diminuição da violência. Ledo engano. A
propósito, para os penalistas e criminólogos radicais o discurso de mais crimes e penas mais altas é tão
satisfatório quanto um hambúrguer: mata rapidamente a fome, mas tem baixo valor nutritivo.
Se é para o direito penal que miramos com todo este olhar punitivo, é preciso que imaginemos o que
queremos que ele faça e o que ele representa. Se imaginarmos que temos 500.000 pessoas presas e a mesma
quantidade esperando para ingressar no sistema, pois estamos meio-a-meio nesta conta, temos 1.000.000 de
pessoas às barras do sistema penal e a violência, segundo o discurso midiático, grassa livremente. Opa, mas
deste número milionário qual é a quantidade de gente que cometeu crimes graves, com violência? É uma
parcela ínfima. Na tipificação tradicional (crimes contra os costumes, antes da Lei 12.015/2009), os crimes
sexuais eram menos de 5% (o INFOPEN não informa se contra crianças e contra adolescentes). A
esmagadora maioria é de tráfico (19%) e patrimoniais (mais de 60%). Daqui não parece estarmos, ainda
bem, numa sociedade de criminosos violentos, embora seja o que se comunica cotidianamente nos jornais.
Mas, ainda, há o questionamento sobre o que se espera que o sistema faça e o que ele representa?
Quanto ao que o sistema pode fazer é preciso pensar nas expectativas sobre os fins da pena. Podíamos ser
sinceros e dizer: a pena deve representar a vingança social em face de um ato grave que é a violência sexual
contra uma criança e um adolescente. OK. Mas há um problema: o Estado condena a vingança, considera-a
motivo fútil e se alinha como um sujeito moral, um terceiro imparcial. Não é lindo? Um conto de fadas, do
tipo em que o lobo come a vovozinha, ou na madrasta que envenena a enteada (belas histórias).

Não sejamos ingênuos, quem conhece um pouco do sistema carcerário sabe que quem é condenado por
crime sexual, o duque treze (em alusão ao Art. 213 do CP), receberá penas muito além da privativa de
liberdade. Será a noiva do quadrante, a mulherzinha do xerife. A violência do sistema opera fortemente.
Sua perversão será contida pelo medo de ali voltar? Não, pois a hipocrisia da ressocialização irá se erguer e
dizer que a pena deve tratar do sujeito, que o sistema é capaz de reintegrá-lo, ou o extremo oposto, se ele se
mostrar como incorrigível ficará para sempre no xadrez, a marca da periculosidade será a sua marca. É a
letra escarlate.
O que fazer? Aumentar as penas? Esta é uma alternativa fácil, porque no tosco discurso parlamentar,
dificilmente, o bom senso irá se levantar e dizer: “olha a questão é bem mais complexa que isso”, num
momento em que o crime é um produto político fantástico e de efeito eleitoral rápido. No campo dos crimes
sexuais contra as crianças e os adolescentes, o Código Penal sofreu (e digo sofreu mesmo) uma ampla
reforma no ano de 2009 e o ECA quanto aos chamados delitos de pedofilia.
Sem querer ser preciosista ou cansativa, o Código passou a ter um capítulo denominado “crimes contra a
dignidade sexual”, tentando retirar a carga moralista que havia no nome “crimes contra os costumes”;
afastou as discussões sobre a presunção de inocência e trouxe o delito denominado como estupro de
vulnerável.
Cabe dizer que o delito cometido contra menores de 14 anos e maiores de 14 e menores de 18 tem a mesma
pena mínima (8 anos). Assim, pouca diferença, embora certo que em face dos menores de 14 anos, basta que
exista a conjunção carnal ou ato libidinoso diverso, sem violência ou grave ameaça. Mas um detalhe é
importante: e os adolescentes de exatos 14 anos? Não aparecem em nenhum momento, como sujeitos destes
crimes. Conduta impune? Outra impropriedade do legislador foi tratar aquele que induz alguém a praticar
um ato destes com menores de 14 anos, a uma pena absolutamente ínfima.
Mas talvez a questão mais complexa foi a unicidade do estupro e do atentado violento ao pudor, pois que se
numa dada situação concreta houver mais de um ato, teremos um crime único. Um benefício, contraditório a
pecha de que a lei deveria ser mais pesada, a seguir a ratio legis. O legislador – a imaginarmos que podemos
conferir alguma significância à lei penal – nem conseguiu fazer um serviço bem feito.
Na mesma linha o ECA, a partir do Art. 240, com as definições sobre a pornografia infantil, investe em tipos
penais de amplitude, desde quem organiza, quem promove, quem filma, quem compra, quem tem, quem
assiste, quem marca encontros com crianças e adolescentes. De assinalar, que numa mirada nas disposições
destas leis penais permite ver que há sempre causas que asseveram as penas e que estão ligadas com o fato
de os autores serem ascendentes, descendentes, tutores ou curadores das vítimas, o que denota que estes são crimes de pessoas que tem uma relação de proximidade com elas: quem as viola é quem as protege.
O fato inegável é que a lei penal tem muito pouco a fazer, especialmente olhando o cenário do sistema penal
e penitenciário. Este sistema tem limitada capacidade pedagógica e extremada capacidade criminógena: o
inverso daquilo que se precisaria. É imprescindível que enfrentemos esta questão premente.
Apesar do cenário que nos aponta como sujeitos que criam pessoas que podem ser pensadas como objeto, a possibilidade que nos permitirá decolar é resgatar aquele senso comunitário, o apreço pelas práticas de
tolerância e de fraternidade.
Romântico? Difícil? Pode até ser, mas é necessário, o fato é que se faz imprescindível começarmos logo,
porque o ciclo vicioso que se instaurou acabou por espraiar um pernicioso sentimento de desesperança,
como se fosse um fim da história, como se isso fosse algo natural. Na verdade, é perverso.

Priscilla Placha Sá


Professora Assistente de Direito Penal da UFPR e da PUCPR. Especialista em Direito Processual Penal (PUCPR). Mestre em
Direito Econômico e Social (PUCPR). Doutoranda em Direito de Estado (UFPR). Advogada Criminal. Conselheira Titular da
OAB/PR. Membro das Comissões da Criança e Adolescente, Mulher Advogada e Advocacia Criminal (OAB/PR)

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