quinta-feira, 17 de março de 2011

Despreparados para a vida - Revista Istoé

Publicado na revista Istoé em 23/02/2011, páginas 58-61

Cada vez mais brasileiros que nasceram com o vírus da Aids chegam à idade adulta. Mas, ao deixar os abrigos onde passaram a infância e a adolescência, eles sofrem para se adaptar à realidade do lado de fora

Solange Azevedo
Conheça a história de Natasha: 

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Conheça a história de Micaela:

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SUPERAÇÃO 
Natasha foi adotada e está feliz. Mas casos como o dela são exceção
Natasha descobriu que tinha o vírus HIV aos 9 anos. Na escola. “Não cheguem perto. Ela é aidética”, gritou uma aluna histérica, durante o recreio. Apesar de não fazer ideia do que aquilo queria dizer, Natasha desconfiou logo que não era boa coisa porque seus amigos passaram a manter distância. No abrigo onde morava desde pequenina, na região metropolitana de São Paulo, ela havia aprendido apenas que tomava remédios constantemente para combater um “bichinho” que invadira seu corpo. Os remédios eram “do bem” e os “bichinhos” eram “do mal”. Natasha cresceu ouvindo que fora viver naquela casa diferente e cheia de gente porque não tinha família. “Eu me sentia estranha”, lembra. “Uma pessoa sem família não tem história. Não tem identidade.”
O cotidiano atípico incomodava Natasha. Ela compartilhava o quarto e as roupas com uma porção de meninas. Era obrigada a seguir uma agenda rígida e coletiva. Mesmo se não estivesse com fome, tinha de comer nos horários predeterminados. Mesmo se não estivesse com sono, tinha de se deitar junto com as colegas. As “tias” e os “tios” do abrigo, embora carinhosos e prestativos, saíam ao final do expediente ou desapareciam, caso arrumassem outro emprego. Apegar-se àqueles adultos que iam e vinham, às vezes, doía. “Alguém sempre fazia tudo por nós. Arrumava a cama. Dava remédio. Lavava e passava. Colocava comida no prato”, afirma Natasha. “Tudo era muito dado porque ninguém imaginava que pudéssemos sobreviver. Fomos cuidadas para morrer em paz.”
Quando Natasha nasceu, em 1992, o número de abrigos para soropositivos estava em expansão no Brasil. Era uma resposta, urgente e necessária, de grupos religiosos e da sociedade civil. “Ninguém queria ficar com essas crianças por causa do medo de contágio e porque não se sabia por quanto tempo viveriam”, diz a infectologista Marinella Della Negra, do Hospital Emílio Ribas. “Muitas ficaram órfãs, outras foram abandonadas em hospitais e acabaram na Febem.” De 1980 até junho de 2010, foram notificados ao Ministério da Saúde 19.203 casos de Aids em crianças de até 12 anos. Assim como Natasha, nove de cada dez foram infectadas pela mãe durante a gestação, o parto ou a amamentação – na chamada transmissão vertical.
As estatísticas não detalham quantas crianças resistiram à enfermidade. Mas cerca de 60% dos brasileiros – de todas as idades – diagnosticados no mesmo período estão vivos. “Nosso país se tornou referência mundial no tratamento da Aids, a transmissão vertical vem caindo e a sobrevida está aumentando nos últimos anos”, afirma Dirceu Greco, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Entre 1983 e 2007, a probabilidade de uma criança estar viva cinco anos depois de descoberta com a doença saltou de 24% para 86%. “Hoje, não dá para estimar o tempo de vida que um paciente terá”, diz a médica Marinella.
Muitos abrigos realizaram um trabalho notável e ainda cumprem um papel social importante. “O problema é que abrimos casas de apoio, mas fomos frágeis na construção de outras possibilidades, como no processo de saída das crianças e dos adolescentes dessas instituições, no suporte familiar e na preparação dos jovens para o mercado de trabalho”, afirma a psicóloga Elizabete Franco Cruz, pesquisadora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. “Existe uma certa perversidade social porque damos um tipo de assistência que, muitas vezes, mantém essas crianças e adolescentes na posição de alguém que sempre precisará ser cuidado. Devemos lhes oferecer perspectivas de vida, de futuro e condições para que tenham autonomia.”
Elizabete relata que centenas de crianças terminaram abrigadas porque vigora no País a ideia de “família Doriana” e “nuclear”. “Onde estão os avós? Os tios? As famílias estendidas? Muitas vezes, os parentes e até o pai ou a mãe são vistos como incompetentes para assumir essas crianças. Temos de tomar cuidado para não idealizar a família nem o abrigo”, alerta a psicóloga. Pela lei brasileira, soropositivos ou não só podem ficar nessas instituições até os 18 anos. “Com 18 anos e um dia, o adolescente se vê sozinho”, diz Kleber Mendes, um dos coordenadores da Rede de Jovens Vivendo com HIV e Aids. “Então, ele percebe que não foi preparado para a vida real. Que não haverá ninguém para lembrá-lo de tomar remédio, que terá de trabalhar, ficar na fila do SUS. Como foi muito tutelado, em geral, não consegue tomar decisões básicas do dia a dia.” Kleber afirma que os jovens demonstram ter dificuldade de lidar com a liberdade total e repentina.
“Tenho vários amigos que sofreram ao sair do abrigo porque, lá dentro, vivíamos num mundo à parte”, conta Natasha. “No ano passado, dois se perderam totalmente, se envolveram com drogas e foram internados numa clínica de reabilitação. Outros, que saíram antes, morreram.” Natasha teve sorte porque foi adotada por uma funcionária do abrigo – com quem mantinha fortes laços afetivos – e se adaptou à família. Está feliz. Além de pai e mãe, ganhou dois irmãos. “Parece que eu nasci da barriga dela”, alegra-se Natasha. “Foi importante ter sido adotada com 16 anos. Meus pais tiveram de assumir certas responsabilidades, como me levar ao médico e assinar documentos da escola, porque eu era menor. Acho que se viesse agora, com 18, não me sentiria filha deles. Seria como vir só porque não tinha onde morar.”
A rotina de Natasha foi entrando nos eixos devagar. Atualmente, além de estudar artes cênicas e dar aula de teatro numa ONG, ela está correndo atrás da papelada para botar os pais adotivos na certidão de nascimento e mudar de sobrenome. Em breve, excluirá Ferreira Braz e se chamará Natasha Rebeca Gimenes Nascimento. “Rebeca é um nome bíblico e foi escolhido pela minha mãe”, conta. Natasha só soube aos 7 anos que tinha uma numerosa família de sangue, quando a avó materna foi visitá-la pela primeira vez. A partir dali, passou a ter contato com os parentes três vezes por ano. Da mãe biológica, morta em 2007, ela guarda a imagem de uma mulher doente. “Eu os amo”, diz Natasha. “Mas, como não convivemos, não temos vínculos suficientes para morar juntos.”
O carioca Wallace Alcântara chegou à Sociedade Viva Cazuza aos 5 anos, depois de ficar órfão de pai e mãe. Quando completou 14, a Justiça do Rio de Janeiro determinou que ele fosse morar com parentes. “Fui um dos primeiros a sair do abrigo. Fiquei mal, foi uma ruptura muito forte. Aquela era a minha família, era tudo o que eu tinha”, recorda o rapaz. “Recomecei do zero. Foi como se tivesse nascido de novo.” Duas tias o visitavam semanalmente na instituição, durante duas horas. Contato havia. O que não havia era convivência e laços afetivos sólidos. Wallace tem 21 anos e, desde que deixou o abrigo, migra entre as casas dessas tias. Quando a relação se torna difícil com uma, recorre à outra – e vai seguindo adiante. O jovem admite ter um temperamento complicado. “Sou cabeça-dura, nervoso e meio marrento”, afirma.
A relutância de Wallace, no entanto, não deve ser interpretada como má-vontade ou simples rebeldia juvenil. Ao deixar a Viva Cazuza, ele não mudou apenas de endereço. Teve de se ajustar, de repente, a uma rotina desconhecida e a pessoas com quem não tinha intimidade. Ele perdeu a proteção e os amigos que tinha desde a infância e foi forçado a construir novas relações num mundo que lhe era estranho e, muitas vezes, preconceituoso. Tudo de uma vez só. No abrigo, ele estudava em colégio particular, praticava esportes. Tinha um monte de colegas que viviam como ele e compreendiam como era sofrido ter de tomar dezoito comprimidos por dia, encarar os efeitos colaterais e ainda ter disposição para enfrentar um amanhã que eles não sabiam se chegaria.
Quando Wallace foi morar no abrigo, os antirretrovirais – medicação para quem tem o vírus da Aids – ainda não eram distribuídos de graça pelo governo. Estar numa instituição como essa, àquela altura, era uma maneira de conseguir tratamento. “A única coisa ruim é que eu não sabia fazer nada. Não tinha liberdade para sair, apanhar ônibus, arrumar minhas roupas. Havia uma superproteção”, afirma Wallace. “Fora de lá, talvez eu não tivesse sobrevivido. Mas, por causa do afeto, acho que o melhor para uma criança é ficar com a família.” Agora, Wallace se debate com o desemprego e diz que está “tomando coragem” para prestar vestibular. O único trabalho que conseguiu, de assistente administrativo, durou pouco mais de seis meses. “Eu não dava conta do serviço”, revela. “Às vezes, deixava tarefas pendentes porque ficava muito tempo conversando pela internet.”
“Essas crianças não nasceram para ter futuro. Foram criadas para o presente. Quanto mais tempo ficam abrigadas, mais difícil se torna reinseri-las nas famílias e na sociedade”, afirma José Araújo, da ONG Espaço de Prevenção e Assistência Humanizada. “A situação no País é gravíssima. Os bebês que chegaram com Aids às casas de apoio hoje são jovens e estão tendo que sair.” Estima-se que 10% das crianças e adolescentes que têm HIV vivem em abrigos específicos para soropositivos. Os outros 90% estão em instituições mistas, com familiares ou conhecidos. A ONG que Araújo coordena, na zona sul de São Paulo, já funcionou como orfanato. Mas, quando ele assumiu a entidade, decidiu trabalhar para que as cerca de 15 crianças soropositivas voltassem para suas famílias ou fossem adotadas.
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“É criminoso deixarmos crianças crescer em abrigos.
O Brasil precisa ter coragem de enfrentar esse problema”
José Araújo, da ONG Espaço de Prevenção e Assistência Humanizada 
Embora não tenha sido fácil, deu certo. Ao mapear o passado de cada uma delas, Araújo descobriu que a maioria tinha avós, tios, irmãos. “É claro que as famílias precisaram de amparo. Mas ficou provado que essas crianças cabiam em algum lugar”, afirma Araújo. “Cinco foram adotadas, as demais foram viver as virtudes e os defeitos de suas famílias biológicas. O erro é a sociedade e o Judiciário acharem que elas deveriam levar uma vida de Barbie.”
O trabalho de Araújo foi inspirado no do Grupo Viva Rachid, do Recife. A diferença é que a ONG pernambucana, criada há 18 anos, chega antes de a criança ir para o abrigo. “Acompanhamos as famílias e, quando a mãe está debilitada pela Aids, pedimos que ela indique com quem gostaria de deixar os filhos”, explica Alaíde Elias da Silva. “Sempre há uma irmã, uma cunhada ou uma comadre que vai assumindo as responsabilidades aos poucos, como resolver questões escolares e levar a criança ao médico. Assim, quando a mãe morre, seus filhos permanecem no seio familiar.”
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SOLIDARIEDADE
Alaíde trabalha para que órfãos da Aids e crianças 
que têm HIV não sejam mandadas para abrigos.  
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Wallace perdeu pai e mãe. Ele morou na Sociedade 
Viva Cazuza, no Rio. Gostava de lá, mas sentia falta de afeto
Alaíde fundou a ONG depois de perder um filho, de 8 anos, infectado pelo HIV durante uma transfusão de sangue. Ela calcula que em 80% dos casos em que atuou as crianças não precisaram ir para orfanatos. “Por mais que haja amor, no abrigo sempre falta um olhar individual”, diz a paulistana Micaela Cyrino, representante da Rede de Jovens Vivendo com HIV e Aids. A universitária, de 22 anos, dá aula de arte no abrigo onde ficou dos 6 aos 18 e mora atualmente com uma tia. Ela conhece uma porção de rapazes e moças que penaram do lado de fora. Um deles passou uns tempos com a avó, mas não deu certo. Quando deixou a casa dela, não suportou a solidão. Às vezes, como não tinha para onde correr, ele ia dormir no hospital. Nessas muitas idas e vindas, se envolveu com drogas e morreu.
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“Dá para contar nos dedos o número de amigos que saíram do abrigo e se deram bem”
Amanda Cristina de Andrade, estudante
“Dá para contar nos dedos o número de amigos que saíram do abrigo e se deram bem”, relata Amanda Cristina de Andrade, 19 anos. “Conheço muita gente que está se prostituindo, traficando ou foi para a cadeia.” Quando morava numa instituição para crianças soropositivas, na capital catarinense, e se aborrecia com a gritaria dos colegas, Amanda escalava as grades das janelas e se refugiava no telhado. “Tinha cerca elétrica nos muros e, sempre que os meus colegas da escola apareciam no portão, a gente tinha de ficar conversando na grade porque eles não podiam entrar lá”, lembra a jovem. “As tiazinhas e os tiozinhos do abrigo me aceitaram. Eu era bem novinha, minha mãe tinha morrido e eles me deram um monte de vestidos. Mas eu me sentia numa prisão.”
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